(Capítulo extraído do meu artigo “Cultura da Interface nos Jogos Digitais: simultaneidade e memória no Diablo III” apresentado no SBGames 2018, trilha Cultura, sob orientação do Prof. Dr. Gustavo Daudt Fischer)
Partindo da ideia de que o déjà vu torna-se um sujeito da tecnocultura, esse fenômeno atua de maneira lúdica em meio aos games como uma característica das máquinas de jogar, nos treinando para usá-las de várias formas. Para Krapp (2004), o déjà vu “permite o acesso a estruturas de condensação, deformação, deslocamento e seus efeitos potencialmente patogênicos”. Se desmontarmos um jogo e vermos ele a partir de seus frames, afim de aproximar o olhar da sua estruturação, é possível identificar rastros de uma simultaneidade que atravessa esse arranjo de camadas. Poderíamos arriscar descrever como uma simultaneidade do tempo.
O enigma do tempo é que sua experiência subjetiva difere de sua medida objetiva. Embora a ciência conheça o infinito, não conhece a ausência absoluta de tempo que seria a eternidade ou a intemporalidade. No entanto, a lembrança involuntária é uma possibilidade permanente ou atemporal: pode ocorrer a qualquer momento sem uma determinada data ou índice temporal que fixa sua ocorrência. Além disso, o conteúdo dessa lembrança retorna da latência como se estivesse em seu estado original, não envelhecido ou definhado em proporção à duração de sua ausência da consciência. (KRAPP, 2004, p. xx, tradução nossa)
De maneira tentativa, podemos vislumbrar uma primeira ideia de simultaneidade (fluxos*), a partir do movimento que geram os próprios quadros e camadas do objeto. Porém, do mesmo modo, não há como tratar a simultaneidade sem considerar os fluxos de operador/máquina simultâneos, assim como assumir a existência de tempos múltiplos e não simultâneos que proporcionam fenômenos que fogem tanto à percepção quanto à imaginação.
Tudo parte de uma certa ideia do movimento, que traz consigo uma contração dos corpos e uma dilatação de seu tempo; conclui-se disso um deslocamento da simultaneidade, de modo que o que é simultâneo em um sistema fixo deixa de sê-lo em um sistema móvel; mais ainda: em virtude da relatividade do repouso e do movimento, em virtude da relatividade do próprio movimento acelerado, essas contrações de extensão, essas dilatações de tempo, essas rupturas de simultaneidade vêm a ser absolutamente recíprocas; nesse sentido, haveria uma multiplicidade de tempos, uma pluralidade de tempos, em diferentes velocidades de transcurso, todos reais, sendo cada um próprio de um sistema de referência; e como, para situar um ponto, torna-se necessário indicar sua posição no tempo tanto quanto no espaço, a única unidade do tempo consiste em ser ele uma quarta dimensão do espaço; é precisamente esse bloco Espaço-Tempo que se divide atualmente em espaço e em tempo de uma infinidade de maneiras, sendo cada uma própria de um sistema. (DELEUZE, 1999, p. 63)
Queremos, portanto, propor a simultaneidade como uma virtualidade, um modo de ser (BERGSON, 2006), o qual se atualiza em um modo de agir. Se pegarmos os frames de games, por exemplo, e aproximarmos da relação entre memória e tela, existe um potencial, indo ao encontro com o que Krapp traz em sua obra “Déjà vu: Aberrations of Cultural Memory”. Em Diablo III há um exemplo dessa relação memória-tela: em janeiro de 2016 os desenvolvedores disponibilizaram dentro do jogo um evento em comemoração aos 20 anos de Diablo I chamado “Escurecer de Tristram” (Figura 1), onde a ideia é a reviver a “emoção de quando você jogou o Diablo, aventurando-se por uma versão reimaginada da catedral original em Diablo III” e ainda solicita para que os jogadores da franquia ficassem atentos para não perderem itens conhecidos . Há uma construção com as camadas do devir onde estas são atravessadas ou por uma simultaneidade do tempo, trazendo todos os tempos juntos quando se atualiza, ou ainda uma a memória que atravessa cada frame a partir dessa simultaneidade.
A partir da ideia de imagem crítica e imagem dialética (DIDIHUBERMAN, 1998), é importante considerar a anacronia para podermos constituir um virtual em que se dá essa imagem a partir de procedimentos heurísticos. A simultaneidade por conta das multiplicidades virtuais pode gerar uma imagem que critica a imagem (imagem em crise), fazendo com que seja criticada a maneira como a vemos: ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la genuinamente a fim de constituí-la. Identifica-se aqui uma imagem técnica. As imagens são mediações entre o homem e o mundo, da mesma forma que nós conhecemos o mundo através de interfaces, ou segundo Eisenstein (2002) a cultura funciona por meio de montagens o que faz com que percebamos o mundo através dessas montagens.
A questão de games (frames), memória e tela são questões bastante potentes. A memória se constrói ou faz outra coisa. Será que cria? Monta? Com base no conceito de memória de Henri Bergson, tudo é duração, e duração é memória: uma continuidade, da mesma forma que existe uma sequência entre o passado e o presente — o passado dura/sobrevive ao presente que ele já foi; já a ideia do presente está ligada à utilidade da vida prática, não podendo existir sem a lembrança. Voltando ao jogo, se possuímos todos os frames e o frame atual, temos todos os quadros passando juntos. Porém, o quadro anterior já é uma atualização do outro, como se fosse uma cebola, em camadas. Para um melhor entendimento desta metáfora com a cebola, parte-se da seguinte explicação: constituída por camadas envolvida por uma casca, podemos considerar a casca da cebola como a memória, onde nela estão contidas camadas em que um quadro é uma atualização do anterior e com isso passa a ser a memória de todos os demais. Desse modo, sendo vistos como um progresso, ou ainda uma acumulação do passado sobre o presente de maneira constante com uma duração (uma reverberação das camadas que formam essa cebola), observa-se uma nova pista de um simultâneo que não é somente espacial, mas também temporal incluindo o tempo no passado. O jogador atualiza as virtualidades do jogo, uma ação que altera o estado do jogo.
A memória não é simplesmente o armazenamento de dados, e a diferença cultural e a mudança histórica em uma sociedade de mídia não são, portanto, tanto uma questão de novas mídias versus antigas quanto um desafio à pura capacidade de armazenamento; assim, a questão é como a função da memória em si é alterada. (KRAPP, 2004, p. xxi, tradução nossa)
Abrindo uma fresta no trabalho e aproximando da questão das ações do jogo, Galloway (2006) determina dois eixos para trabalha-las: diegético e não-diegético; operador e máquina. Com isso, formam-se quatro grupos, cada um sendo um tipo de jogo: um jogo de aventura com muita história e pouca interação, o maquínico é diegético; jogos de luta, o operador é diegético; jogos de RPG, de estratégia e simulação, o operador é não-diegético; e um glitch e/ou power ups dentro do jogo, o maquínico é não-diegético (Figura 2). As ações não são feitas só pelo jogador (operador), mas também existem ações referentes à máquina. Cria-se um diálogo constante entre máquina e operador, dentro e fora da diegese. O operador não é passivo, da mesma forma que a máquina também não é.
Para um melhor entendimento dessas ações, Galloway (2006) faz um delineamento de um sistema de quatro (Figura 3): o jogo é um processo puro tornado perceptível na ressonância maquínica dos atos da máquina diegética; o jogo é um algoritmo subjetivo, uma intervenção de código exercida tanto dentro do jogo quanto sem jogabilidade na forma do ato do operador não-diegético; o jogo é um ritual de jogadores transportados para o lugar imaginário da jogabilidade e atuado na forma de atos de operadores diegéticos; o jogo é o jogo da estrutura, uma agitação generativa entre o interior e o exterior, efetuada através do ato da máquina não-diegético. Sendo assim, encarar os jogos como ação é revelar uma característica que se torna própria desta mídia.
Existem pistas de uma simultaneidade no observável, que pode ser esboçada em três ordens: a primeira da ordem técnico-estética onde vemos na tela/montagem “ao mesmo tempo” o mapa e um mini-mapa (Figura 4); a segunda da ordem “vertical” e mais (in)visível onde temos o Diablo I que se atualiza no Diablo III (ao jogar a versão mais recente do game também estamos jogando as versões que o antecederam — Figura 5); e uma terceira ordem a qual seria a própria duração (metáfora da cebola).
É possível notar uma tentativa de resgate do passado por meio das semelhanças instauradas na interface do jogo (Figura 6): uma imagem mais pixelada, ornamentos na barra inferior onde encontram-se status de vida/mana e habilidades do personagem, a movimentação do herói de maneira mais simplificada (robotizada-marcada). O invisível deixa rastros e/ou vestígios, onde a memória é uma operação não de reconhecimento, mas de alteração: são múltiplos tempos que se juntam em uma montagem. No caso do jogo, não temos a memória do mesmo mas sim uma memória que volta ao outro, e nesse retorno, voltamos ao futuro (o quanto que o Diablo I está no Diablo II que por sua vez está no Diablo III). Pensando o game como software envolvendo atores orgânicos e não-orgânicos, o próprio passa a ser a “coisa” invisível que une tudo e a todos.
* A ideia de “fluxos” vai de encontro com a fala de Deleuze (1999), onde afirma que “dois fluxos jamais poderiam ser ditos coexistentes ou simultâneos se não estivessem contidos em um mesmo e terceiro fluxo”.
Referências
BERGSON, H. Duração e simultaneidade: a propósito da teoria de Einstein. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON, H. Memória e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
DELEUZE, G. Bergsonismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998
EISENSTEIN, S. A forma do filme. São Paulo: Zahar, 2002.
GALLOWAY, A. R. Gaming: essays on algorithmic culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006.
GALLOWAY, A. R. The interface effect. Polity Press, 2012.
KRAPP, P. Déjà vu: aberrations of cultural memory. Published by the University of Minnesota Press, 2004.