A cerca do conceito de dispositivo de Michael Foucault, tentaremos exercitar uma reflexão a cerca dos videologs de campeonatos de jogos eletrônicos (e-Sports) em meio ao campo da comunicação. Para os autores Dreyfus e Rabinow, o dispositivo foucaultiano se refere às “práticas elas mesmas, atuando como um aparelho, uma ferramenta, constituindo sujeitos e os organizando” (1995, p.135). Ou seja, trataremos aqui este conceito como uma ferramenta analítica, aproximando de uma relação do macro arranjo “jogo”.
Se voltarmos o nosso olhar para períodos mais distantes em relação ao tempo contemporâneo da história, para Huizinga (2003), o jogo se refere à um elemento primitivo, precedendo todo o surgimento da cultura quando compartilhado com outros animais. A partir deste pensamento, Huizinga (2003) sugere como definição de jogo uma ação lúdica em conjunto a um ato voluntário caracterizado como um escape da vida real, com limitação de tempo e espaço, contemplando uma ordem mesmo que temporária. O jogar é um ato cultural, faz parte da nossa cultura, além de possuir (e produzir) a sua própria cultura (desde um elemento primitivo até o que temos hoje). Temos o videogame enquanto objeto cultural ligado à história e à materialidade, composto por um dispositivo computacional eletrônico e um jogo simulado em software. Portanto, é considerado um meio cultural envolvendo muitas máquinas orgânicas e inorgânicas.
Em meio a essa cultura dos jogos, existe a construção de uma audiovisualidade a qual é bastante comum dentro da comunidade de jogadores: os videologs. A construção dessa nova imagem em meio as novas mídias, repleta de quadros e molduras que ali se apresentam, possibilitam gerar reflexões a cerca dessa prática. Não temos apenas o ato de jogar: há também a necessidade de pertencer ao jogo e ser um observador. A experiência que os videologs de jogos proporciona é o olhar curioso que nos possibilita estabelecer o sujeito desde o momento em que este depende do olhar do Outro para ter a sua imagem construída.
A cultura visual é atualmente um importante campo de estudo acadêmico, não apenas porque o cinema e a televisão são onipresentes, mas porque reconhecemos que qualquer diagnóstico das condições contemporâneas deve levar em conta a ampla influência dessas tecnologias e seus efeitos em todos os outros aspectos da cultura, incluindo o modo como vivenciamos a nós mesmos e o que isso implica para a estrutura das sociedades. (SHAW, 2008)
Os jogos digitais têm ganhado cada vez mais destaque no mercado de entretenimento, onde alguns deles contam com grandes campeonatos em nível mundial sendo considerados hoje como e-Sports (esporte eletrônico) e seus jogadores reconhecidos como atletas. Com esta nova forma de olhar para os games, as partidas dessas competições são narradas e possuem estruturas físicas como se fosse um jogo de futebol ou qualquer outro esporte. Poderíamos identificar que o lúdico se apresenta de modos bastante diversificados nesta cultura gamer, principalmente na forma onde tais jogos digitais se realizam tanto em seu próprio ambiente (máquina) quanto num campo midiatizado (transmissões em canais de YouTube, Twitch.Tv ou ainda em canais específicos da televisão – algumas finais de campeonato de jogos eletrônicos).
Entendemos que jogos são capazes de serem jogados de inúmeras formas, dependendo apenas da forma como suas regras são encaradas pelos usuários, ou até mesmo pela experiência (variando de player para player) que resulta das interações dos jogadores. Poderíamos dizer que esta mesma relação pode ser vista como uma das estruturas básicas dos jogos eletrônicos? Essas máquinas de jogar se mostram capazes de gerar uma sequência de imagens: diferente da montagem tradicional do cinema, cujo o montador já edita sequencialmente as cenas, nos jogos digitais as imagens são geradas através de um binômio criador das máquinas, do algoritmo e do jogador/operador. Sem essa postura lúdica não existiria interação com a máquina e consequentemente não geraria esse fluxo de imagens. Voltando o olhar para o nosso observável, é interessante destacar que os videologs se mostram como uma maneira de registrar esse fluxo na forma de um audiovisual convencional, onde mais uma vez temos um contexto de remediação através da hipermediação.
Um ponto curioso e que vale ser levantado como reflexão é o contágio que essas imagens dos videologs proporcionam em meio a cultura do jogo, contaminando o cinema (imagens sintéticas): são concebidos em tempo real sendo fruto da subjetividade de cada jogador que está interagindo com a máquina e com os algoritmos. Os espectadores são o resultado de uma mistura de jogo (grita/comemora/pula/vibra), mas também passam a impressão de como se estivessem em uma sala de cinema assistindo a um “filme” projetado em uma tela. Essa interação que perdura traduz todo o entretenimento frente ao ato de jogar, assim como no modo contemplativo ao assistir uma partida de algum jogo sendo transmitida.
Podemos aqui, então, tentar algo provocativo para refletirmos: existe, também, um jogo daqueles que observam um jogo? Se pensarmos dessa maneira, o formato dos jogos digitais, os gêneros, até a mecânica e a distribuição, aliados aos processos de consumo e na observação dos consumidores (do público do arcade/fliperama, ao TwichTv/ YouTube – assistir partidas de jogos no computador ou televisão em casa), é possível identificar um “segundo grau de jogo”: entre usuários diretos (jogadores), usuários indiretos (observadores) e desenvolvedores/maquínico como um desafio entre tais participantes, onde o critério de “superar o básico e se desviar do estabelecido” seria capaz de se reinventar. As ações não são feitas só por quem opera, mas também existem ações referentes à máquina, assim como de quem apenas observa (o olhar que afeta, interage). Cria-se, portanto, um diálogo constante entre máquina, operador e espectador, dentro e fora da diegese do jogo e do videolog. O operador não é passivo, da mesma forma que a máquina e o espectador também não são, frente ao processo “jogo” como um macro-modo de interação sendo reinventado a partir de uma ideia limitada de que jogos são meros passatempos.
Huizinga (2003) já sugeria a ideia de não tratar a lógica do jogo apenas em sua especificidade e sim o lúdico como característica da espécie humana, nos possibilitando vir a perceber possíveis micro arranjos para além do jogo estritamente considerado. Desse modo, é possível entender que a ludicidade é um braço importante dos jogos, e no estágio no qual nos encontramos percebemos ela como um traço tecnocultural do videogame. O “jogo” enquanto macro dispositivo pode dar espaço para a cultura do videogame atuar como um macro dispositivo, não se limitando apenas ao jogo em si, mas tudo o que o envolve e o que ele produz. Mas o que, até o que vimos, difere o jogo do cinema? Conforme Galloway (2006) nos apresenta a ideia de que, assim como cinema e fotografia são ação, os jogos também são ação. Mas, há dois elementos que diferem o jogo do cinema que possuem esse componente da ação: a máquina de jogar, a qual cria um universo digital (o maquínico age); e o lúdico, o jogo, o circulo mágico o qual convida o jogador a agir, chamando para a ação. Ou seja, enquanto no cinema somos espectadores, nos jogos podemos tanto ser meros espectadores quanto produtores (exemplo a cultura de modding): uma ação não somente passiva, mas ativa e recíproca, uma vez que precisa existir a ação de ambos os lados para o jogo acontecer. Se possuímos uma cultura do videogame que tem a ação em seu centro, ao assistirmos um videolog (seja de campeonato de e-Sports ou gameplay) deixamos de agir e nos tornamos espectadores. Esse movimento de nos tornarmos observadores ainda constitui uma ação não ativa (não muda o estado), enquanto o videolog contém devires do videogame. Os diversos olhares de quem observa esses videologs, assim como as próprias ações, dão movimento e força para pensarmos em uma potência que compõem o nosso modo de interagir com estes objetos, caracterizando toda a natureza do videogame: suas práticas enquanto ferramentas de sua própria cultura.
REFERÊNCIAS
DREYFUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica — para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
GALLOWAY, Alexander R. Gaming: Essays on Algorithmic Culture. Published by the University of Minnesota Press, 2006.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5o. ed. [S.l.]: Perspectiva, 2003. p. 256.
SHAW, Debra Benita. Technoculture: The Key Concepts. New York: Berg. 2008. Versão para Kindle.