Jogos dentro de Jogos: especulando o conceito de incrustação como virtualidade

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Com um olhar para os primórdios da história, Huizinga (2000) sugere que o jogo se refere à um elemento primitivo, precedendo o surgimento da cultura quando dividido com outros animais. A partir desta ideia, Huizinga (2000) traz a definição de jogo como uma ação lúdica em conjunto a um ato voluntário caracterizado como um escape da vida real, com limitação de tempo e espaço, contemplando uma ordem mesmo que temporária: o jogo como uma qualidade de ação.

Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura (…). Em toda a parte, encontramos, presente o jogo, como uma qualidade de ação bem determinada e distinta da vida “comum”. (HUIZINGA, 2000, p. 7)

Um videogame é um objeto cultural, ligado à história e à materialidade, composto por um dispositivo computacional eletrônico e um jogo simulado em software. Para Pias (2011):

Um programa de jogo é (…) não apenas um conjunto de instruções, uma espécie de código de leis para o mundo do jogo em particular, que tenho o dever de seguir quando estou na companhia de computadores, mas ao mesmo tempo também um agente da polícia que monitora precisamente minhas ações. (PIAS, 2011)

Esse conjunto de instruções que constitui o jogo, indicam não apenas “a actividade específica que nomeia, mas também a totalidade das imagens, símbolos ou instrumentos necessários a essa mesma atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo” (CAILLOIS, 2001, p. 10). Em um determinado tempo e em um lugar tangível, para Huizinga (2014) “o jogo cria dentro do mundo ordinário outro universo próprio, extraordinário e delimitado no qual os jogadores se movem de acordo com uma lei especial e imperiosa. (…) O jogo cativa e captura em um mundo específico, em sentido figurado”. Não apenas criações de universos: temos jogos que são possíveis serem jogados dentro de jogos. Com este raciocínio, surge a ideia de pensar a incrustação de games como um objeto de pesquisa. Como a incrustação de games em games atualiza o game? Partindo desta questão, a intenção é explorar camadas de jogos e como nessas camadas dentro dos jogos se atualizam as qualidades que estes constroem no seu interior.

Para entender os jogos dentro de jogos, é importante trazer a reflexão sobre o conceito de duração bergsoniana. Ao pensar a duração, é preciso propor multiplicidades que deem conta ao mesmo tempo da espacialidade e da temporalidade. Deste modo, é viável enunciar que a duração é continuidade e fluxo, o que faz com que ela seja uma linha que sustenta o devir. “O universo dura. Quanto mais nos aprofundarmos na natureza do tempo, mais compreenderemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo” (BERGSON, 2006, p.8).

Partindo para a ideia de virtualidade, conforme Bergson (2011), tudo possui dois modos: um modo de ser (virtual) e um modo de agir (atual). No seu modo de ser a coisa é (virtualmente) algo; no seu modo de agir, a coisa atualiza-se de alguma maneira na matéria. Temos presente na virtualidade a coexistência de todas as durações, as quais estão praticamente imbricadas. Por conta de uma simultaneidade de durações, é possível que a virtualidade tenha vida própria no seu processo de atualização: suas múltiplas virtualidades possibilitam um indeterminado número de atualizações.

A virtualidade nos dá a possibilidade teórica de afirmar que o empirismo de Bergson implica (…) na retomada de novos processos de subjetivação, ou ainda, na invenção de novos modos-de-vida e na configuração de novas subjetividades. (…) A virtualidade abre um grande campo de possibilidade para pensarmos as relações entre sujeito e objeto, extinguindo-os como referências de conhecimento e também como pressupostos da representação clássica. (VASCONCELLOS, 2005, p. 13)

Figura 1 — The Witcher 3: Wild Hunt

Fonte: Moby Games. <https://bit.ly/2D0qGgX>

Aqui, a virtualidade seria o game The Witcher 3: Wild Hunt (Figura 1), porém uma virtualidade que necessita ser construída dentro dos parâmetros deste tipo de game. Há um momento dentro do próprio jogo, o Gwent (Figura 2): um minijogo de cartas, jogável em uma taberna ou desafiado por personagens no universo do jogo do The Witcher 3, podendo ou não aceitar jogar. O jogo dentro do jogo não é outro jogo (ainda é The Witcher), a não ser quando este momento do primeiro se autonomiza e se torna um outro game, um game independente. O caso de Gwent: a desenvolvedora do jogo, CD Projekt Red, percebeu o sucesso do minijogo e decidiu fazer um jogo novo totalmente a parte, fora do jogo maior. Temos a presença de um jogo dentro do jogo que se emancipa: mantém as mesmas regras, mas com melhorias para ser um jogo standalone. A versão singleplayer do Gwent (fora do The Witcher) é um spinoffdo The Witcher. Possuímos a virtualidade The Witcher 3 a qual possui um modo de ser Witcher que existe no jogo com suas ethicidades, onde se atualizam no Gwent durando em um jogo no formato standalone.

Figura 2 — Gwent

Fonte: Moby Games. <https://bit.ly/2QtWmhr>

Com o olhar para a virtualidade do jogo, nos inquieta pensar na possibilidade de uma coalescência de tempos. Ou então poderíamos dizer, de maneira tentativa, que nesse game que foi gerado, o qual surgiu de outro game, coalescem imagens de outros tempos da duração desse tipo de jogo. Percebemos a presença da incrustação de uma coisa em outra coisa, que em princípio seria a mesma coisa. “Mas, e isso é uma particularidade do efeito eletrônico, jamais a integridade da imagem incrustrada será destruída; ela poderá ser restituída a todo instante em sua totalidade” (DUGUET, 1991, p. 65). Onde está presente a incrustação do jogo? Neste objeto e utilizando metáfora, temos o jogo The Witcher sendo a “pedra” e Gwent o “coral”: Gwent enquanto um momento dentro do jogo é um “coral” incrustado na “pedra” The Witcher (Figura 3).

Figura 3 — Gwent dentro do The Witcher

Fonte: Combo Infinito. <https://bit.ly/2paG5Bl>

Conforme Arlindo Machado, podemos especular a incrustação como um virtual: “um elemento pode penetrar em outro sem deixar traço, mas pode também reaparecer novamente” (MACHADO, 2015, p. 250–251). Nota-se que o personagem principal do jogo é retirado de sua rota de missões (Figura 4) ao se aproximar de um personagem se incrustando em um espaço artificial autônomo dando início a partida de Gwent, onde a imagem atravessa e acaba reencontrando outra. A partir do ensaio de uma análise prévia em cima de um determinado jogo, é possível partir para uma reflexão sobre como pensar o game, e também como o game se atualiza em outros games. Pensando nos próximos passos, a pesquisa pretende ser constituída de uma arqueologia, bem como escavação, com a intenção de identificar outras incidências de incrustação de games em games. Desse modo, nos restam pistas para pensarmos em uma evolução criadora de games através da incrustação, inscritos em uma tecnocultura audiovisual.

Figura 4 — Gwent dentro do The Witcher

Fonte: Game Blast. <https://bit.ly/2OpeBmz>

Notas:

  1. A game program is […] not only a set of instructions, a kind of law code for the world of the particular game, that I have a duty to follow when I am in the company of computers, but at the same time also a police agent that precisely monitors my actions.” (PIAS, 2011)
  2. “O jogo cria dentro do mundo ordinário outro universo próprio, extraordinário e delimitado no qual os jogadores se movem de acordo com uma lei especial e imperiosa. (…) O jogo cativa e captura em um mundo específico, em sentido figurado”. Discurso de Huzinga de fevereiro de 1933 na Universidade de Leiden. O texto completo pode ser lido no livro De lo lúdico y lo serio, editora Casimiro Libros (Madrid, 2014).
  3. The Witcher 3: Wild Hunt é um jogo RPG de ação desenvolvido pela CD Projekt Red e publicado pela Atari. https://thewitcher.com/en/witcher3
  4. Gwent é um jogo de cartas do The Witcher, derivado do minijogo que pode ser jogado dentro do The Witcher 3: Wild Hunthttps://www.playgwent.com/pt-BR
  5. CD Projekt: distribuidora polonesa de jogos. A principal divisão da empresa é o estúdio de desenvolvimento CD Projekt RED, conhecido pela série The Witcherhttps://en.cdprojektred.com/
  6. Standalone é um jogo independente: não é necessário um outro jogo para o seu funcionamento.
  7. Singleplayer é uma modalidade de jogo para um único jogador.
  8. Thronebreaker, expansão de Gwent: jogo independente e spinoff da franquia The Witcher. https://bit.ly/2NlpuJW
  9. Ethicidades são as características, o modo de ser, a virtualidade do território.
  10. Para Henri Bergson a vida é o centro e na natureza tudo é da ordem do imprevisível, o que se caracteriza como uma evolução criadora: a vida que evolui se diferenciando das espécies. Portanto, as razões são da vida, não da consciência ou da ciência. Pensando nos games e na atualização de games em si, cabe refletir a partir deste olhar bergsoniano como se dá a evolução criadora por essa incrustação, tendo numa possível genealogia dos games.

Referências:

BERGSON, Henri. Memória e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BERGSON, Henri. Memória e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 2001.

DUGUET, Anne-Marie. Jean-Christophe Averty. Paris: Dis Voir, 1991.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5. Ed.[S1]: Perspectiva, 2003.

MACHADO, Arlindo. Por um audiovisual gráfico. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, ano 4, ed. 7, jan./jun. 2015. DOI: https://bit.ly/2xnPedJ

PIAS, Claus. The game player’s duty: the user as a gestalt of ports, in Media Archaeology: approaches, applications and implications. Eds. Erkki Huhtamo and Jussi Parikka. Berkeley: University of California Press, 2011, p. 164–183.

VASCONCELLOS, Jorge. Arte, Subjetividade e Virtualidade: ensaios sobre Bergson, Deleuze e Virilio. Rio de Janeiro: PUBLIT, 2005.

*Resumo expandido apresentado no III Seminário Discente da UFRGS — Conexões e Desvios, 2018, e publicado em Anais

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