Um olhar sobre a preservação de jogos

No começo do ano passado (2018) entrei no programa de mestrado em Ciências da Comunicação (Unisinos), e desde a especialização, concluída em 2016, tive o interesse de seguir estudando jogos. Ao ir aprofundando cada vez mais o meu olhar nesse universo, foi me chamando mais a atenção em olhar para o jogo em si (não vídeos de gameplay) e entender como que algumas coisas se davam: no caso a existência de jogos que são possíveis de serem jogados dentro de si. Com essa perspectiva de olhar jogos dentro de jogos aproximando de uma ideia de um efeito cultural do déjà vu, acabo me aproximando da necessidade de buscar por jogos antigos para entender os vestígios que aparecem em jogos mais atuais: a lembrança de um outro tempo (da sua própria franquia ou de outros jogos), seja no caráter de tributo/nostalgia/afeto ou por seguir um estilo de jogo precursor de determinado gameplay.

Dentre os jogos que eu estou analisando em minha dissertação está Diablo, por exemplo. É um jogo muito rico em elementos para serem pensados e explorados entre as suas três edições. Além disso, estou retornando para jogos anteriores ao Diablo para entender como que eles influenciam ou se mantém vivos dentro de outro jogo de alguma forma, como Rogue (1983) e Gauntlet (1985). Por eu estar realizando movimentos arqueológicos (archaeogaming), resgatar roguelikes, os dungeoncrawlers antigos me ajudam a pensar o Diablo neste caso. Portanto, ter acesso a jogos antigos me ajuda na compreensão em uma ‘forma de ser’ dos jogos, partindo de uma ideia de que um jogo são muitos jogos: nenhum jogo é somente uma mecânica, quase sempre tem um complexo de mecânicas.

A conservação/preservação de jogos, desse modo, se torna importante para a minha pesquisa, por permitir que eu retorne para jogos antigos/clássicos e tenha a chance de experimentá-los (muitos nunca cheguei a jogar), o que torna muito mais rica minha análise. Fazendo uma conexão com a ideia expressa (e em fase especulativa na minha pesquisa) de que todo jogo são muitos jogos, nos possibilita entrarmos em discussões desde as mecânicas que estão dentro do jogo e à esses jogos que vem de uma memória dos jogos, e que emergem/atualizam-se ali num passado dos jogos, em uma cultura dos jogos. Então nesse ponto, para entendermos essa cultura dos jogos é preciso preservar esses espaços, esses territórios, pois carregam em si todo um universo próprio, uma cultura própria.

Uma era de plataformas digitais e jogos por streaming

Se pensarmos no consumo das coisas no geral, hoje em dia a gente trabalha, consome, constrói coisas, vivemos, brincamos/jogamos, nos relacionamos, nos comunicamos dentro desses espaços digitais: passamos a maior parte do tempo dentro desses ambientes digitais. Então é natural começarmos a pensar numa arqueologia digital, em preservação de dados, pois existe uma cultura nesses espaços. Possuímos espaços que criam emoções reais e usam recursos reais. Ou ainda: escavamos terras virtuais de seu mundo virtual. Acredito que o archaeogaming seja uma das formas de se manter vivo não somente lembranças, mas toda uma história dos jogos, seja no caráter digital ou físico (pelo mundo afora existem museus dedicados para jogos).

Preservar jogos é preservar a sua origem, a sua história, a sua cultura, assim como na nossa vida fora da tela. Com essa tendência de termos jogos via streaming, por se tratar de territórios digitais, precisamos pensar em preservação de dados. Uma curadoria que é bem interessante é a do site Internet Archive, em que é possível encontrar jogos antigos/clássicos resgatados e de alguma forma preservados, podendo serem jogados no site por conta de emuladores.

Archaeogaming

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=dlfiME_ggcc

Para auxiliar o meu olhar para os jogos, me aproximei e me apropriei do conceito trabalhado por Andrew Reinhard: o archaeogaming. O archaeogaming é uma arqueologia de e em jogos, permitindo que nós, enquanto pesquisadores e jogadores, exploremos o jogo na sua melhor forma: jogando. No caso da minha dissertação, para fins de análise esse conceito me ajuda a entender aquele universo que estou imersa, encontrar artefatos, vestígios de outros tempos (daquele jogo ou de outros jogos) etc.

Vale ressaltar também que o archaeogaming não se limita olhar apenas para dentro do jogo: é possível realizar essa ‘arqueologia dos jogos’ fora da tela. Um exemplo desse ‘fora da tela’ pensando na forma física é a escavação feita em Alamogordo (México) do jogo do E.T. da Atari (que originou o documentário ‘Atari: Game Over’). Houve todo um resgate de um jogo que foi considerado por muitos o pior jogo da Atari ou o jogo que quebrou a Atari, aproximando dessa ideia de conservação.

O archaeogaming nos faz olhar para os jogos como sítios arqueológicos, onde podemos realizar investigações arqueológicas nesses espaços: todos os jogos digitais são sítios arqueológicos, assim como todos os videogames são artefatos arqueológicos. Andrew Reinhard defende que no archaeogaming não existe um por que sem o quando, e isso nos provoca pensar sobre a incidência de um efeito cultural déjà vu de jogos dentro de jogos: o archaeogaming nos possibilita identificarmos camadas como a lembrança de um gameplay, uma lembrança da ordem da franquia do jogo, uma lembrança de outros meios, entre outros. Tais lembranças, enquanto déjà vu de games em games acabam se encontrando na mesma ambiência, sejam elas por finalidades diferentes ou similares, e com uma temporalidade estipulada, sendo ela cronológica ou enquanto memória.

A arqueologia não se limita em estudar o passado: o que instiga a arqueologia está presente nas coisas, nos objetos, nos artefatos, no que ela mesma denomina de cultura material. Essa cultura, revela características latentes seja de uma determinada sociedade ou (tecno)cultura, seja processo ou algum fenômeno histórico, passado ou presente. A presença do videogame na tecnocultura contemporânea é um fato incontestável e, como tal, merece ser estudado (e preservado) arqueologicamente. Acredito que essa discussão/reflexão é bastante provocativa para pensarmos sobre essa temática. É percebido que cada vez mais se mostra importante começarmos a pensar em como preservar o que vivemos digitalmente: praticamente “nossa casa” é dentro das telas nos tempos de hoje, por fazermos muita coisa digitalmente.

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*Esse post foi realizado em cima das respostas que concedi para a entrevista do site CanalTech, publicada no dia 30 de agosto de 2019. A matéria completa, intitulada ‘A era do streaming com o Stadia será o fim da conservação de jogos?’, do jornalista Wagner Wakka, está disponível em: https://canaltech.com.br/games/a-era-do-streaming-com-o-stadia-sera-o-fim-da-conservacao-de-jogos-147737/.

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