Entrevista concedida para o TAB Uol, 20 de novembro de 2019.
Todos lembram quando as primeiras imagens do filme Sonic foram divulgadas e o público fez duras críticas sobre a aparência do personagem que não dialogavam com o que conhecemos dos games. Fico na dúvida se esse acontecimento nas redes sociais podemos ou não chamar de uma espécie de “teste de audiência”. Essas críticas, na minha opinião, não surgem como estratégia para divulgação intencionalmente, mesmo que se possa fazer um uso inteligente de reverter a situação como o caso do Sonic. Para quem é fã do jogo e já passou horas jogando no Mega Drive na época, foi um impacto significante ver o personagem principal da série de jogos com um visual diferente do que está habituado. As reclamações foram desde o personagem possuir suas feições do rosto mais humanizadas, a falta de luvas ou ainda usar um tênis de corrida e não a clássica sapatilha pontiaguda dos jogos. Toda essa repercussão fez com que alguns fãs criassem a sua própria versão do personagem com o visual corrigido. Nesse caso o que chama a atenção é a maneira como se deram as críticas em massa através das redes sociais e, de certo modo, a apropriação por parte do público em remodelar o personagem conforme julgavam ser a melhor representação.
O diretor ouvir o apelo do público e atender a solicitação de um redesenho de Sonic, pode ser visto como uma oportunidade de se acertar um pouco mais na adaptação dos jogos para o cinema. A partir desse episódio, a produção e o diretor do filme ouviram feedback dos fãs além de aproximar a aparência do Sonic para algo que remete mais aos jogos. Acaba sendo uma produção colaborativa, em que o público de certo modo carrega uma satisfação em ter contribuído. O filme poderia não ter tido tanta visibilidade como teve, se não houvesse esse “erro”, esse “glitch” com o personagem, que foi o que provocou uma crítica pesada em torno do filme.
Não é a primeira vez que um produto com origem nos jogos é adaptado para o cinema e, por consequência, não é bem recebido pelo público. Filmes que são adaptações dos quadrinhos (Marvel, DC), sofrem com o mesmo impacto e críticas dos fãs, de não ser fiel aos quadrinhos. O público é exigente e espera que seja fiel ao que eles conhecem enquanto produto original. Hoje com essa potencialização de nossas vozes que as redes sociais possibilitam, é mais fácil percebermos uma crise narrativa de uma mídia dentro da outra, assim como o conflito de referências de diferentes gerações.
O filme do Mortal Kombat (1995), do Street Fighter (1994) e do Super Mario Bros. (1993), quando lançados, tiveram a mesma repercussão que temos em Sonic? Não são bons filmes, não são fiéis aos jogos, foram fracassos de bilheteria e crítica. Um dos pontos que pode ser um problema na hora de fazer uma adaptação para as grandes telas, seja justamente adaptar uma narrativa interativa que não tem a mesma duração em horas que um filme rodando com uma média de 2 horas, e nesse caso somos somente espectadores e não mais jogadores. Só que antes de tudo, são adaptações: nem sempre vai ser igual, justamente pelo fato de ser uma outra mídia, com uma outra intencionalidade. Um filme nunca vai ser um jogo, um livro nunca vai ser uma série, sempre vai haver suas particularidades do próprio meio: existem as especificidades das linguagens cinematográficas e da linguagem dos jogos.
O filme do Warcraft, por exemplo, houve uma repercussão ruim por parte do público que joga o jogo. A série The Witcher que está por sair pela Netflix, é uma adaptação dos livros que deram origem ao jogo, e ainda assim é um produto que acaba não agradando o fã de Geralt: “cadê a segunda espada?”, “estão faltando mais detalhes na armadura”, “ele é um personagem feio e fizeram muito bonito”. As adaptações, de um modo geral, acabam ganhando fortes críticas por não conseguirem (muitas vezes) captar a essência do jogo e assim transformá-lo em um filme bom. Ao mesmo tempo em que falta uma consciência de que por mais que seja baseado em jogo, livro ou o que for, vai ser sempre uma adaptação e algumas coisas irão ficar de fora. Na hora de produzir tais adaptações, poderia ter uma curadoria por parte de quem produz tais produtos para não perder tanto as características dos personagens, como no caso de Sonic: acabou ficando humanizado demais e não a figura cartunesca que estamos acostumados a ver nos jogos e animações da franquia. Talvez uma aproximação maior com quem desenvolveu o jogo e/ou escreveu o livro ajudaria neste caso.
Ultimamente, especialmente falando sobre videogame/jogos, tem tido uma certa tendência em retomar produtos com um apelo nostálgico, principalmente no discurso, em uma tentativa de viver novamente algo de um outro tempo. Reviver essas lembranças a fim de manter viva essa memória e esse sentimento de nostalgia. Este terreno do saudosismo carrega uma dimensão afetiva que pode contribuir na forma como as coisas, os lugares e toda a materialidade do mundo se tornam não apenas emocionalmente significativos, mas auxilia na maneira como as pessoas se relacionam com seus ambientes e objetos de mídia. Isso nos ajuda entender este fenômeno, o qual não considero perigoso nos tempos atuais, mas sim mais uma forma de vender um produto e mexer com a memória do público com esse apelo afetivo. Gostar ou não do resultado vai depender sempre da forma que isso é executado e divulgado, e esse é um ponto que será sempre relativo conforme o nível de envolvimento e carinho que se tem por determinado jogo, HQ etc. Fãs de carteirinha serão sempre um público mais sensível e exigente, por estar imerso naquele universo e conhecer cada detalhe.
Algo que tenho percebido em minha dissertação do mestrado, onde analiso jogos, é a capacidade de um jogo carregar em si muitos jogos, muitas vezes com um caráter de tributo: algum elemento da interface que remete a outro jogo ou as franquias anteriores dele mesmo. Os videogames podem ser vistos como sistemas afetivos, em função de que ao abrirmos um jogo no celular, no computador ou no próprio console, nós estamos abrindo uma “forma de relação” com o que encontramos nessa experiência do jogar, além de uma série de significados e implicações culturais que circulam nos videogames.
Podemos dizer que, hoje, possuímos um centro encanto em reaver o passado (saudosismo) trazendo uma roupagem antiga para produtos novos e vice-versa, assim como no discurso de produtos que nos são ofertados para relembrar ou reviver uma memória passada que marcou gerações (uma prática muito comum em meio aos jogos). Jogos como Donkey Kong, Pac-Man, Super Mario e Tetris, por exemplo, fazem parte de uma memória viva de muitas pessoas. Atualmente, por conta dessa marca por vezes nostálgica, tais jogos (entre outros mais antigos) aparecem reutilizados obtendo uma “nova vida” em função da internet (podemos colocar aqui as adaptações para outras mídias, como o cinema) e toda tecnologia que a acompanha (smartphones, i-Pads entre outros).
Por conta de ter forte uma cultura de modding, usos e apropriações de códigos e as comunidades dos jogos, é bastante comum termos a participação do público em possíveis melhorias nos jogos (jogabilidade, personagens, entre outros). Assim como o exemplo de No Man’s Sky que sofreu ajustes aproximando do que aconteceu com o filme do Sonic, existe uma forte cultura de modding nos jogos onde a partir do código os jogadores recriam suas versões e/ou melhorias para os mesmos — caso consideremos aqui esta prática como uma forma de participação do público. Existem alguns jogos, como RuneScape, Doom, Age of Empire e GTA, que possuem uma participação muito forte da comunidade do jogo, por exemplo. Em RuneScape, ocorreu um episódio onde os desenvolvedores lançaram a versão “Old School RuneScape” após realizarem uma pesquisa com a comunidade do jogo. Isso aconteceu por conta da evolução de RuneScape 2: houve uma mudança na forma de combate e alguns problemas que alguns jogadores enfrentavam ao entrar no PVP. Alguns meses depois, lançaram RuneScape 3, porém não fez tanto sucesso entre a comunidade de jogadores. Hoje, Old School RuneScape possui mais jogadores do que RuneScape 3, o que reforça essa relação afetiva entre as comunidades e seus respectivos jogos. O que vale destacar sobre Old School RuneScape, indo em direção à pergunta inicial, é que o jogo é reconhecido por ter a participação de sua comunidade para contribuir com o melhor desempenho do jogo, tendo votações abertas se determinada melhoria entra ou não no jogo.
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*Esse post foi realizado com base nas respostas que concedi para a entrevista do site TAB Uol, publicada no dia 20 de novembro de 2019. A matéria completa, intitulada “‘Sonic’ inaugura lógica do recall de filmes em tempos de rede social”, do jornalista Matheus Pichonelli, está disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2019/11/20/sonic-refeito-e-o-apice-dos-testes-de-audiencia-em-tempos-de-rede-social.htm