Animal Crossing: New Horizons é um jogo para a plataforma Nintendo Switch lançado em março deste ano, o qual muito se ouviu falar. Sabemos que os jogos, em geral, em muitos momentos servem também como uma fuga da realidade, e no meio dessa pandemia que estamos vivendo é saudável para a nossa cabeça. Conforme apontei em um post anterior, a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a prescrever os videogames como forma de tratamento para a nossa existência contínua em nossas casas, em decorrência da Covid-19.
Uma coisa que me chamou a atenção em Animal Crossing é o uso de máscaras médicas — máscaras no geral — se aproximando do enfrentamento diário ao redor do mundo por conta da Covid-19. Além das máscaras, os jogadores criam sinais “instruindo” os moradores a lavarem as mãos ou compartilhar a mídia onde construíram estações de lavagem com o objetivo de erradicar o vírus. Uma “fuga da realidade”, pero no mucho.
Em uma matéria publicada na Polygon, há um belo registro desse “fenômeno” em meio ao jogo que reflete a nossa realidade no momento de confinamento. Um relato de um jogador para essa matéria, fala o seguinte, por exemplo: “Isso e o distanciamento social parecem ter sido bem-sucedidos em conter a disseminação do [Covid-19], então eu meio que queria incentivar mais pessoas a pensar em mascarar [se], se o suprimento estiver disponível em sua área” (Law, tradução livre). Outro relato de jogador: “Sinto-me bem por estar seguro e atencioso, mesmo que isso não importe no mundo virtual” (Nick Hahneman, tradução livre).
É notável que os jogadores tendem a aderir às normas sociais em relação ao espaço pessoal entre avatares em jogos multiplayer. E não é só em Animal Crossing: no jogo Fallout 76, por exemplo, os jogadores começaram a acumular papel higiênico digital, às vezes até subindo os preços para milhares de caps, a moeda do jogo.
Ainda que a imagem do jogo deseja ser jogo, parece haver uma suposta necessidade por parte de quem joga em (dependendo do jogo) trazer para dentro do seu universo elementos de nosso cotidiano — mesmo que em tom de piada como em Fallout 76. E claro, alguns jogos trazem em si uma espécie de devir de nosso cotidiano fora das telas, a qual também é atualizada pelo jogador em suas ações naquele espaço. Em Animal Crossing não é diferente, por mais que não importe para o espaço do jogo (ou não faça diferença) trazer elementos como o uso da máscara em diálogo com o cenário que o mundo está atravessando, por exemplo. Ainda assim, são artefatos que permaneceram naquele sítio que poderá no contar sobre um momento [ainda] estranho a todos. Portanto, me aproximo de uma visada mais arqueológica para essa reflexão.
Tara Copplestone e John Aycock, em seu artigo Entombed: An Archaeological Examination of an Atari 2600 Game (2018), irão apontar que “jogos de computador não são apenas um produto técnico: são uma forma de cultura material que pode ser examinada através de lentes arqueológicas, perfurando os restos materiais do código para expor artefatos do processo humano de programação”. Por mais que os autores estejam lançando vistas para o que está por detrás da imagem do jogo, aqui aproximamos este pensamento para o fato de observarmos tais elementos culturais, talvez um símbolo da pandemia (a máscara), para nos fazer pensar na existência de uma certa humanidade por detrás da mecânica que o jogo se apresenta.
Ou ainda, podemos entender que não é pelo fato de que estamos em um ambiente sintético que isso significa que “não possam ser mantidos separados da humanidade. A arqueologia digital pode ser implantada para entender as conexões entre as pessoas e as tecnologias que elas adotam, usam, modificam e descartam” (Andrew Reinhard, 2019) — ou ainda: espaços que nós habitamos. Portanto, deixamos também nossos rastros, nossos vestígios.
Outra prática que apareceu a partir de Animal Crossing. O The Museum of English Rural Life, museu que faz parte da University of Reading (UK), esteve fechado em função da pandemia do coronavírus desde o dia 20 março (teve sua reabertura agora em setembro). Para conhecimento, o museu apresenta uma vasta coleção para que se possa explorar como as habilidades e as experiências de agricultores e artesãos (tanto do passado quanto do presente) podem auxiliar a moldar nossas vidas agora e no futuro. Ok, mas o que isso tem a ver com o jogo? Explico. Em matéria no site da Polygon, o The Museum of English Rural Life estava pedindo aos seus clientes/visitantes para que se envolvessem com o museu de uma maneira diferente — através do Animal Crossing. Uma forma de interagir com as suas coleções a partir da criação de artefatos dentro do jogo — para o museu da “vida real”, não para o do jogo. O artefato: criar aventais rurais para os personagens de Animal Crossing usarem — vestimenta tradicionalmente usada para proteger as roupas da sujeira ao longo da lida agrícola. O museu pretende criar uma exposição online para expor os aventais desenvolvidos pela comunidade do jogo: uma homenagem ao trabalho do museu em arquivar a história e, também, a sua “adoção” da cultura digital.
Estamos nos movendo em espaços onde podemos criar ambientes digitais que nos permitem interagir com eles. Além disso, cada elemento que constitui o jogo e os eventos que ali ocorrem, acabam contribuindo para o surgimento de um significado mais amplo daquele ambiente — no caso do jogo. Como Shawn Graham (2016) vai nos dizer, “tudo o que entra no espaço imaterial provém de sua fonte cultural externa de uma forma ou de outra”. Desse modo, jogar em um cenário pandêmico e os vestígios que nele surgem dialogando com o nosso tempo, nos permite gerar reflexões acerca desses espaços e a forma com a qual nos relacionamos com estes ambientes.
Em um artigo publicado em 2019 na Revista InTexto, a Profa. Dra. Suely Fragoso, a doutoranda Mariana Amaro e o graduando Ian Wason Lane, entrevistaram Marcin Blacha (designer de jogos e Diretor de Narrativa do estúdio CD Projekt RED). Convoco a lembrança desse artigo em específico, pois me marcou muito uma fala de Blacha e que acredito que cabe como fechamento para fins de reflexão. O designer, em uma de suas respostas ao tratar do desenvolvimento de um gameplay [ou games em geral], fala da “Filosofia do Organismo de Whitehead” (1978), o qual “descreve a realidade como um processo, um cosmo de eventos inter-relacionados, em constante mutação”. A partir disso, Blacha dispara o seguinte: “criamos videogames para imitar o nosso mundo, então podemos olhar para eles como modelos simplificados desse mundo — microcosmos governados pelas regras implementadas”. A partir dessa lente mais filosófica, é possível pensar acerca dos elementos presentes no jogo e fora dele, em como são eventos [ou processos] que, em algum grau, estão inter-relacionados — o jogador está, também, incluído como mais um elemento dentre os demais.
Talvez, a partir de eventos que ocorrem dentro do espaço do jogo, como no caso de Animal Crossing, seja uma tentativa de dar novos sentidos à um mundo que parece se esvair de sentidos. Ou uma tentativa de ressignificar nossas práticas para que de algum modo [coletivo] possamos compartilhar um construto de segurança e cuidado. Também poderíamos especular o espaço do jogo como um ambiente formado por eventos [ou processos] inter-relacionados em constante mutação, onde em nossa experimentação há mudanças, tanto na forma que o jogo me afeta e como eu afeto o jogo. [Henri Bergson vai nos dizer que uma existência só pode ser dada numa experiência.] Independente de termos qualquer tipo de definições, esta parece se mostrar mais uma prática em meio aos jogos de movimentos de arquivar/preservar a história para além de sua própria narrativa, transbordando a tela e criando estreitamentos com o nosso cotidiano.