A década de 1970, sem dúvida, foi a primeira década da história desta indústria: o desenvolvimento de alguns dos primeiros videogames, tanto para versões de arcade (principalmente) quanto para consoles domésticos. Chamada como a primeira geração de consoles (entre 1972 e 1980), trouxe Magnavox Odyssey, Telstar, Home Pong e Color TV-Game — e aqui no Brasil a versão da família Pong, o Telejogo Philco-Ford(comercializado em 1977). É importante destacar que nesta primeira leva, os jogos eram componentes nativos dos consoles, ou seja, vinham embutidos no dispositivo (não havia mídia externa ou removível). Porém, muitas vezes esquecemos de observar com atenção a trajetória dos consoles de videogames, e alguns deles passam despercebidos.
Em uma época que grandes corporações começavam a se estabelecer no mercado, em 1973 a Alpex Computer Corporation retirou-se do mercado das caixas registradoras eletrônicas. Com um mercado muito recente, ainda assim os videogames tinham um belo salto a oferecer. Foi aí que em 1974 a Alpex autorizou dois de seus funcionários a trabalharem em um projeto de videogame com o codinome RAVEN: Wallace Kirschner e Lawrence Haskel. Na época, os jogos populares eram os esportivos, como o Pong, justamente por serem simples sem ter a necessidade de gráficos rebuscados ou complexos. Sendo assim, o primeiro jogo desenvolvido por Lawrence Haskel foi um simulador de hóquei (Hockey). Além dele, vieram também uma variação do jogo da velha, um jogo de tiro e um software de desenho artístico, todos desenvolvidos para RAVEN.
Era preciso levar RAVEN para o mercado antes que os concorrentes pudessem largar na frente. Em função disso, a Alpex entrou em diálogo com a empresa já parceira Fairchild, onde (felizmente) enviou o engenheiro Jerry Lawson para avaliar o sistema. Lawson de fato se impressionou com o que viu e levou adiante para que a Fairchild licenciasse a tecnologia. É a partir daqui que temos uma mudança significativa, mudando o modelo de negócio dos videogames domésticos. A partir disso, Kirschner, Haskel e Lawson converteram o protótipo para que ele funcionasse com o chip F8 da Fairchild e esboçaram um joystick que dialogasse com os jogos já então projetados para o sistema — onde o projeto passou a ser conhecido (em 1975) como STRATOS.
Em 1976, após anunciar sua parceria com a Alpex, a Fairchild coloca Lawson no comando do software e da engenharia eletrônica de todo o projeto, tendo Nicholas Talesfore como designer do projeto e o engenheiro mecânico Ron Smith. Foram movimentos de projetar um protetor para as placas de circuitos dos módulos removíveis, etiquetas para os cartuchos para atrair as pessoas a comprar os jogos (baseados na estética da eletrônica dos anos 1970) e uma mudança no design do joystick de Lawson (para ser viável a produção em massa). Em junho de 1976, com o nome Fairchild Video Entertainment System (VES), Lawson levou o console para aprovação da Federal Communications Commission (FCC) — a qual solicitou alguns requisitos.
Fairchild VES passou a ser disponibilizado para o grande público em novembro de 1976, com dois jogos — de tênis e de hóquei, integrados ao sistema. Em seu lançamento, também estavam disponíveis três cartuchos (posteriormente chegando a 26 cartuchos), um deles sendo o Videocart1 (contendo Quadra Doodle, Tic Tac Toe, Doodle e Shooting Gallery). Além de ser o primeiro videogame da segunda geração de consoles (posteriormente temos Atari 2600, Bally Astrocade e Magnavox Odyssey 2, entre 1976 e 1988; também o primeiro console portátil, Microvision, lançado em 1979), ele também foi o primeiro a ser realmente programável em função de que os jogos podiam ser vendidos separadamente do console. Ainda, o console da Fairchild foi o primeiro que permitiu que o jogador pudesse competir contra um oponente de AI, e introduziu pela primeira vez o mecanismo de “pausa” no mundo dos videogames — o botão “Hold” permitia parar a ação na tela e possibilitava a mudança de parâmetros como a velocidade do jogo.
Em 1977, por conta de a Atari Inc. lançar o seu “Video Computer System” (mais tarde conhecido como Atari 2600), a Fairchild mudou o nome de seu console para Channel F (ou Channel Fun) — mantendo o uso do antigo nome junto dele. Ainda que nem sempre os pioneiros de fato são bem-sucedidos, o Channel F vendeu razoavelmente bem se comparado aos seus predecessores de console dedicados. Porém o Atari 2600 em seguida o superou, oferecendo uma biblioteca de títulos de ação e versões caseiras dos jogos populares de arcade, ofuscando ainda mais o Channel F. Em 1983, a produção do sistema da Fairchild foi descontinuado.
Jerry Lawson, o pai do cartucho dos videogames
Como dito, Jerry Lawson foi um importante engenheiro e designer de jogos, figura notável no desenvolvimento do Fairchild Channel F — o primeiro console baseado em cartucho lançado para venda comercial. Como parte do Strong Museum of Play (Rochester, New York), desde 2013 o Strong’s International Center for the History of Electronic Games guarda documentos pessoais e artefatos profissionais de Lawson, onde alguns deles são exibidos no próprio museu na exposição eGameRevolution.
Fato curioso: logo após o lançamento de Pong, Lawson construiu o arcade (máquina de fliperama) chamado Demolition Derby, utilizando o microprocessador F8 da própria Fairchild — sem a permissão da empresa. A partir disso que a Fairchild o convidou para para trabalhar oficialmente em sua divisão de jogos.
Mesmo deixando a Fairchild em 1980, Lawson seguiu trabalhando como engenheiro, além de ser o primeiro negro a fundar uma empresa de desenvolvimento de videogames — a Videosoft Inc. Lawson também ofereceu suporte para a próxima geração de engenheiros negros, sendo mentor de estudantes de engenharia em Stanford. Devido a complicações de sua diabete, Jerry Lawson faleceu em abril de 2011, aos 70 anos.
Um marco para a indústria de jogos
O uso de cartuchos intercambiáveis definitivamente se mostrou revolucionário para uma indústria que estava começando. Isso abriu a possibilidade de comercializar dezenas de milhões de jogos. Fairchild Channel F inaugurou a era dos consoles domésticos da segunda geração, promovendo um novo modo de produção e desenvolvimento na qual a indústria de jogos passou a funcionar. Mesmo que, a partir de um agir arqueológico, saltem histórias alternativas dos objetos de mídia, este movimento busca trazer à superfície esses artefatos (dispositivos) soterrados ou materialidades que tiveram relevância na constituição de saberes de determinado tempo e espaço, assim colaborando para o desenvolvimento dos objetos de mídia — aqui no caso, pensando nos jogos/videogames.
No caso do Channel F ter sido ofuscado e alguns anos depois ter sido descontinuado, está muito longe de considerar uma “morte” desta mídia, deste console. Por mais que sejam lamentadas, não há um óbito definitivo para essas mídias antigas: elas na verdade nunca nos deixaram. Indo ao encontro da ideia de remediação de Bolter & Grusin (1999), tais mídias são constantemente remediadas, renascendo e passando a ter novos usos, contextos e adaptações. O console da Fairchild inaugurou um novo modo de operacionalizar e vender videogames, que poderíamos dizer que esta permanece em devir até hoje na cultura dos jogos — mesmo que por vezes sua história deixa de ser contada.
Todo jogo (ou console) contém sua própria biografia e histórico de uso, que são compartilhadas por inúmeras cópias de jogos produzidos. Mesmo que sejam cópias, elas possuem a sua própria trajetória com o passar do tempo na medida em como foi jogada, por quem e tudo mais que aconteceu relacionada a ela, até mesmo com a progressão da tecnologia. Isso nos permite ter a chance de entender de onde vêm os jogos mais recentes: o artefato do jogo passa a impulsionar a descoberta e, com isso, cria uma cultura em torno dele. Do mesmo modo que a cultura é/cria o videogame, ele é/cria a cultura. De fato, temos aqui o cartucho sendo tanto uma revolução cultural quanto tecnológica.
Referências:
Sobre o Fairchild Channel F: https://www.fastcompany.com/3040889/the-untold-story-of-the-invention-of-the-game-cartridge
Sobre Jerry Lawson: https://science.howstuffworks.com/innovation/big-thinkers/jerry-lawson.htm
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: MIT Press, 1999.
HUHTAMO, Erkki; PARIKKA, Jussi. Media archaeology: approaches, applications, and implications. Berkeley: University of California Press, 2011.