A proposta deste post, além de falar sobre uma das minhas franquias de jogos favoritas (do gênero de luta), é provocar uma breve reflexão e movimentos de escavação acerca da potencialidade preservacionista que temos nos jogos digitais, bem como as questões ligadas a memória e afeto. Lançado pela Capcom em maio de 2018, Street Fighter 30th Anniversary Collection, como o próprio nome já anuncia, é uma coletânea comemorativa aos 30 anos da franquia. Street Fighter, sem dúvidas, é um importante marco para jogos de luta, deixando um legado para o gênero a partir de sua série de jogos. Nesta edição, temos presente doze jogos da série, sendo eles: Street Fighter (1987), Street Fighter II: The World Warrior (1991), Champion Edition (1992), Turbo: Hyper Fighting (1992), Super (1993), Super Turbo (1994), Street Fighter Alpha: Alpha (1995), Alpha 2 (1996), Alpha 3 (1998), Street Fighter III: New Generation (1997), 2nd Impact (1997) e 3rd Strike (1999). Além disso, quatro dos doze jogos são possíveis de serem jogados no modo multiplayer online, com ranking de pontos (Turbo:Hyper Fighting, Super Turbo, Alpha 3 e 3rd Strike).
Ao adquirir recentemente a coletânea, e por ter jogado na minha infância nos anos 90 (especialmente Street Fighter II), logo de cara percebi o cuidado na curadoria não apenas dos jogos, mas especialmente no conteúdo oferecido para celebrar os 30 anos: um trabalho de fã para fã. Um diferencial que a edição oferece é ligado a própria jogabilidade: teve um cuidado em preservar o modo de jogar, nos remetendo a experiência de quando jogávamos em um fliperama, sem ser emulação de consoles antigos. Ou seja, temos os doze jogos em suas reproduções fiéis das versões que encontrávamos em fliperamas, apresentando o seletor de dificuldades, comandos idênticos para os ataques especiais e combos, bem como personagens disponíveis — sem o uso de DLC.
Street Fighter 30th Anniversary Collection é uma verdadeira experiência que nos aproxima dos arcades dos anos 80 e 90 — uma experiência voltada ao combate. Muitos jogos de luta, hoje, permitem que comandos básicos e golpes especiais sejam ativados ao apertarmos um único botão — como por exemplo Marvel vs Capcom Infinite e o Street Fighter V, contendo mecânicas pensando na questão da acessibilidade. Nesta edição, prepare-se para criar alguns calos nos dedos: para quem não é habituado a franquia ou a época de fervor desses jogos, exige esforço e as partidas contém certa densidade. No menu do jogo há uma lista de habilidades onde é possível estudar os golpes disponíveis, treinar no modo treino ou ainda no modo arcade com algum amigo. Para reforçar uma simulação da experiência de estarmos em uma cabine de fliperama, o jogo oferece filtros a serem utilizados, onde um deles é o original: deixa a tela parecida com o display menor e quadrado dos fliperamas. Além disso, a Capcom procurou manter o aspecto CRT original dos jogos.
Pensar essas mídias (os jogos) a partir de um viés arqueológico (das mídias e do archaeogaming), onde além de produtos também são produtores de toda uma cultura, nos auxilia a desenvolver novas maneiras de reflexão. Toda essa experiência, bem como os artefatos oferecidos nessa edição comemorativa dos 30 anos de Street Fighter, me aproxima de alguns autores que trabalhei em minha dissertação, como Jussi Parikka. Ao invés de contarmos uma história a partir da evolução do desenvolvimento da franquia, com o tanto de riquezas que a coletânea apresenta, se faz possível descobrirmos “maneiras mais complexas e multitemporais de entender a mudança tecnológica em relação aos modos de sensação” (PARIKKA, 2012, p. 23): ou seja, podemos convocar aqui o afeto.
A partir da percepção sobre movimentos iniciais da reprodução tecnológica e a ‘emoção’ produzida em massa com o caráter afetivo, em meio a indústria do entretenimento, é possível perceber a relação que se dá entre diferentes mídias: o afeto nos oferece outra perspectiva sobre a pesquisa da cultura midiática. É a partir de uma dimensão do afeto como parte do movimento mídia-arqueológico, algo que tem me despertado bastante interesse, que pode-se contribuir na maneira como as coisas, os lugares e toda a materialidade do mundo se tornam não apenas emocionalmente significativos, mas passa a auxiliar a forma como nós nos relacionamos com nossos espaços/ambientes (TARLOW, 2012) e, no meu caso enquanto pesquisadora, com objetos de mídia (os jogos).
O que mais me chamou a atenção, para além dos doze jogos disponíveis, são os conteúdos extras que podem ser explorados através dos menus do jogo. Street Fighter 30th Anniversary Collection traz um museu da série para dentro do jogo, contendo todas as informações possíveis acerca da produção dos jogos presentes nesta edição: extras; rascunhos não utilizados; personagens nunca vistos; traz toda uma linha do tempo interativa em ordem cronológica de lançamentos da franquia (jogos, filmes, animes, RPGs, jogos mobile etc.); é possível ouvir as músicas compostas para os jogos (uma biblioteca de soundtrack); apresenta uma ficha técnica completa dos jogos e compilações já lançadas.
São verdadeiras relíquias e artefatos a serem explorados pelo jogador nesse museu, além de ser uma bela oportunidade de relembrar a trajetória da série de jogos. Ainda dentre todo o conteúdo, há uma galeria dos personagens da franquia, apresentando informações de todos os lutadores da série (data de nascimento, o que gostam ou não, estilo de luta etc.). Para os aficionados no processo de animação dos golpes, a coletânea possibilita que sejam assistidas animações de movesets, vendo quadro a quadro para entender de que maneira os clássicos golpes mudaram ao longo dos anos e dos jogos lançados. Falando em produção, no museu presente no jogo há um espaço com a apresentação original da Capcom para o Street Fighter, visão dos bastidores do nascimento da história, arte desenvolvida de alguns dos jogos — uma galeria de imagens com curiosidades da produção, comentários e rascunhos dos conceitos originais.
Videogames são sistemas afetivos, conforme nos aponta a autora Aubrey Anable: ao jogarmos ou explorarmos um jogo, estamos abrindo uma “forma de relação”, sendo elas com propriedades estéticas ou narrativas do jogo, operações do software, mecânicas do hardware, relações de lazer e diversão até mesmo trabalho, nosso corpo, outros jogadores e “toda uma série de significados e implicações culturais que circulam nos videogames” (ANABLE, 2018, p. 8–9). Mas para isso, sem memória não somos capazes de reviver essas experiências que este tipo de mídia nos oferece.
Pensando no jogo, poderíamos especular a nostalgia que ele provoca como um estado afetivo transformador: a experiência emocional que o jogo proporciona, nos leva a observar o que esse “estado afetivo de nostalgia” pode significar no contexto de exploração do mundo dos jogos (SLOAN, 2016). Portanto, como defendo em minha dissertação, nos jogos o ato de desencadear memórias nostálgicas surge com o objetivo de estimular os jogadores a refletirem sobre suas próprias memórias, através de imagens e/ou signos memorativos que nos possibilitam tal reflexão de um passado que não é possível ser restaurado por completo.
Além disso, para concluir a reflexão ensaiada aqui: não apenas sobre tratar o jogo enquanto um sítio arqueológico (REINHARD, 2018), onde exploramos o território, escavamos, descobrimos artefatos, andamos por ruínas, mas a presença de um museu do jogo dentro do próprio jogo nos possibilita erguermos a discussão acerca da necessidade de discutirmos como preservar a memória desses jogos. A preservação de jogos se mostra importante por permitir que se retorne para jogos antigos/clássicos e que tenhamos a chance de experimentá-los, o que torna rico o entendimento do que é jogo e de sua própria cultura. Uma preservação poderia possibilitar que possamos entrar em discussões desde as mecânicas que compõem e a esses jogos que vem de uma memória dos jogos, os quais emergem/atualizam-se ali em um passado dos jogos, em uma cultura dos jogos (ou do gênero que o compete).
Referências
ANABLE, Aubrey. Playing with feelings: video games and affect. University of Minnesota, 2018.
PARIKKA, Jussi. What is media archaology? Cambridge: Polity Press, 2012.
REINHARD, Andrew. Archaeogaming: an introduction to archaeology in and of video games. New York: Berghahn Books, 2018.
SLOAN, Robin J. S. A impression of home: player nostalgia and the impulse to explore game worlds. In: FIRST INTERNATIONAL JOINT CONFERENCE OF DIGRA AND FDG. Digital Games Research Association and Society for the Advancement of the Science of Digital Games, August, 2016, Dundee, Scotland. Proceedings […] v. 13, n. 1. Disponível em: http://www.digra.org/digital-library/publications/an-impression-of-home-player-nostalgia-and-the-impulse-to-explore-game-worlds/. Acesso em: 22 dez. 2019.
TARLOW, Sarah. The archaeology of emotion and affect. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, CA, v. 41, p. 169–185, out. 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-092611-145944. Acesso em: 20 nov. 2019.
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