Atualmente existe uma computadorização das tendências da cultura e essa nova formulação dos objetos de mídia tende a se manifestar cada vez mais com o passar do tempo. Com um olhar voltado para as novas mídias, este trabalho buscou investigar a multiplicidade visual das novas mídias sob a lógica algorítmica dos videologs das partidas de Battlefield 4, Diablo III, Doom, Dota 2, HearthStone, Heroes of The Storm, League of Legends, Overwatch, Uncharted 4, World of War Craft, os quais são jogos de RTS de Ação (Action Real-Time Strategy), MOBA (Multiplayer Online Battle Arena), cardgame estratégico, FPS (First-Person Shooter), action RPG (Role-Playing Game), adventure em terceira pessoa e MMORPG (Massively Multiplayer Online Role-Playing Game). No mundo dos jogos, é muito comum termos vídeos produzidos pelos próprios jogadores mostrando o gameplay (jogabilidade) de determinado jogo até mesmo em tempo real (streams), e neste caso a ser tratado, enredos compostos por planos diferentes, o uso da tela com múltiplas visões, imagens que tragam não somente a partida, mas também o jogador e o ambiente em que ele está (voyeurismo). Uma união de diferentes elementos para juntos contar uma história para quem assiste. A investigação que realizou-se nessas audiovisualidades teve como objetivo entender como essa multiplicidade visual forma esse estatuto dessa imagem nas novas mídias, gerando uma simbiose da corporeidade do jogador e do espectador em meio ao maquínico e o virtual, do mesmo modo que são associadas imagens reais com imagens técnicas.
Vigilância e Voyeurismo
O Panóptico de Bentham consiste de uma prisão circular onde um observador central poderia observar todas as celas. Representa o conceito de um Estado totalitário que tudo vê. Na transmissão de uma partida de um jogo digital é como inverter o panóptico, tiramos as paredes da torre de observação onde o indivíduo está jogando e todos em torno podem observá-lo. Observam-no como se fosse através de um espelho de um interrogatório. Como um cientista que deseja entender quem é aquele jogador? Porque joga daquele jeito?
Podemos dizer que existem mais “janelas” do que paredes (KILPP, 2010, p.40), conforme o Panóptico de Bentham, porém num sentido mais amplo: os frames têm a função de nos fazer acreditar que temos a permissão de ver tudo o que é transmitido em cada quadro desses videologs, nos dando a sensação de que é possível controlar tudo o que acontece durante o jogo e o que o jogador está fazendo/falando nas imagens que estão sendo transmitidas.
“Para que o olhar seja escópico, não basta que seja uma vista dissimulada: todo voyeurevita ser flagrado: ele apaga suas pegadas visuais, os ruídos de seus passos, as sombras e os reflexos que, inicialmente, o denunciam; mas também o espião-detetive e o controlador agem assim; assim como talvez o jornalista e o fotógrafo ajam quando perseguem o “furo”, ou o acontecimento, em sentido bastante largo”. (KILPP, 2010, p.34).
Existem vídeos de partidas de jogos digitais que não possui a presença visual da figura humana, onde ao vermos apenas a imagem do jogo, o operador é omitido: só existe o maquínico. O fato de não saber quem está por de trás da imagem do jogo passa a ser um fetiche, aliado ao raciocínio de que não existe uma imagem sintética do gameplay sem o sujeito (ele está implícito).
Nos videologs a câmera que está capturando cada quadro é o olho do voyeur, em outras palavras, quando consumimos estas imagens o espectador passa a ser um voyeur. Essas audiovisualidades possuem uma virtualidade que se atualiza através de inúmeras formas de agir: o fetiche do gameplay é um modo de agir de uma virtualidade, onde possui uma qualidade virtual abstrata de um modo de ser (como uma camada sob o micro mundo do game) que se atualiza em simultâneos. Como espectadores, somos portadores de um olhar curioso, onde através dele podemos instituir o sujeito a partir do momento que este depende do olhar do Outro para ter sua imagem projetada/construída.
Temos uma figura humana narcisista que se revela em uma janela desse vídeo retratado como um personagem daquela narrativa, como se fosse uma fresta na forma de camada sob a interface do jogo. Além disso, o jogador percebe a especularidade de quem o assiste sendo essa uma consciência mútua: a intenção do vídeo é exibir o jogo e quem joga permitindo que o espectador entre no seu universo. Podemos considerar a vigilância sobre o voyeurismo com duas características (KILPP, 2010): uma de caráter enunciativo (imagem do player) e outra de caráter pragmático (videologs).
Análise dos empíricos
O uso de multicâmeras também é identificado em câmeras de segurança, mostrando diferentes olhares de um mesmo objeto em todas as imagens ali sendo exibidas em tempo real. Quando aplicamos esta forma nos jogos, temos simultâneos diferentes: o objeto é o mesmo — o jogo, mas traz um frame mostrando a identidade do jogador, outro frame a partida, além de ter presente as GUI. Pode-se dizer que se trata de uma espacialidade lateral com camadas e sobreposições, proporcionando uma imersão para o espectador e ao mesmo tempo enunciando uma certa vigilância. A montagem espacial, portanto, não é própria dos games.
Outra forma de encarar essa composição espacial é com um olhar estético para essa experiência que o usuário vive de múltiplas tarefas e múltiplas janelas de interface gráfica, sem ser necessariamente “lado a lado” mas também por meio de camadas (Figura 1): tanto em partidas como World of Warcraft (Figura 1, A), Heroes of The Storm (Figura 1, B) e Overwatch (Figura 1, C), nos primeiros quadros temos o jogo sendo ele composto por uma camada cinemática em que ocorre toda ação do próprio game e em cima disso temos uma camada do software/GUI proporcionando uma profundidade; no segundo quadro o jogador rodeado de interferências como o ambiente em que se situa, por exemplo. A real experiência de quem observa, seja o espectador, ou de quem analisa estes vídeos é o que dá todo o sentido para esse processo (BOLTER & GRUSIN, 1999). Ou seja, não existe uma mídia que seja isolada de todas as demais sem que tenha algum tipo de relação ou conectividade. Cada um desses quadros mostra uma situação/momento com um motivo em comum: o jogo. Visões e ângulos diferentes de vivenciar um mesmo objeto de nova mídia.
Para Kilpp (2010), a presença de mais de um quadro tem o propósito de “multiplicar os ângulos de uma mesma situação, concedendo aos participantes e aos espectadores um vasto e denso aparato virtual de vistas tecnicamente possíveis”. Essa multiplicidade visual forma esse estatuto dessa imagem nas novas mídias, criando uma simbiose da corporeidade da torcida e jogadores rodeados por estruturas físicas (máquinas) e virtual, assim como imita o cinemático contendo imagens reais com imagens técnicas. As ações que ocorrem no decorrer do tempo de partida mudam o conteúdo de um quadro ou acaba criando um novo quadro, em que neles a condição da tela é acometido por completo. Isso é a reinvenção dos antecessores dessa nova mídia, pois o espaço não depende mais do tempo, o que é simultâneo não precisa ser necessariamente uma sequência.
Na Figura 2, é possível identificar um padrão nesse formato da nova mídia caracterizado pelas inúmeras janelas num mesmo espaço atemporal, representando o Panóptico de Bentham: existem mais “janelas” do que paredes, permitindo que todos possam observar o que se passa nos gameplays de diferentes estilos de jogos como Battlefield 4 (Figura 2, A) e Hearthstone (Figura 2, B). A especularidade presente nestes videologs é percebida, pois o(s) jogador(es) sabe que está sendo observado por estar proporcionando uma audiovisualidade intencional com o propósito de exibir a partida e revelar sua identidade. O espectador tem sua curiosidade já esperada por quem produz o vídeo: uma especularidade consciente de ambas as partes.
Um ponto curioso e que vale ser levantado como reflexão é o contágio que essas imagens proporcionam em meio a cultura do jogo (arena/aquários), contaminando o cinema (imagens sintéticas): são concebidos em tempo real sendo fruto da subjetividade de cada jogador que está interagindo com a máquina e com os algoritmos. Os torcedores são o resultado de uma mistura de jogo (grita/comemora/pula/vibra), mas também passam a impressão de como se estivessem em uma sala de cinema assistindo a um “filme” projetado em uma tela. Cada um desses módulos visuais representados no vídeo (Figura 3), continuam sendo partes independentes uns dos outros onde somados formam o todo. Isso permite uma manipulação sem que o restante da construção seja interferido por suas alterações graças a modularidade na programação de computadores no quesito estrutural. Isso passa a ser uma consequência da transcodifcação: traduzir algo para um outro formato.
Construir a narrativa de um objeto da nova mídia é apenas um método de acessar dados. Na Figura 4, a narrativa é um domínio do algoritmo do jogo, onde junto com toda uma base de dados, molda uma reflexão da representação computadorizada. Porém nem todo o objeto dessa nova mídia, é de forma óbvia um banco de dados, como é o caso destes vídeos: a experiência proporcionada é como uma narrativa, onde do ponto de vista de quem joga, todos os elementos ali presentes possuem algum tipo de motivação até mesmo a imagem do jogador ilustrada através de uma webcam como forma de afirmar o seu pertencimento na partida (narcisista). Aqui a figura humana é colocada novamente sob o jogo, mas diferente do campeonato onde estão dentro de um aquário, o jogador é situado como um fantasma/espectro digital.
Nessa nova narrativa dos videologs a presença na própria imagem do jogador tem um aspecto de enunciação que deve ser considerado. Não existe imagem sintética do jogo sem o sujeito. O jogador pode ser colocado de lado, como vídeos que são apenas o jogo em si sem a figura humana, onde o fato de não sabermos quem está por trás da imagem do jogo é um fetiche (assim como a curiosidade despertada em querer saber quem é o dono da voz de um programa de rádio). A partir da materialização de quem está jogando no gameplay (Figura 4), abrimos a caixa preta e lembramos que existe um sujeito ali e isso influencia na construção da narrativa desses videologs: o playerdeixa de ser apenas um executor de comandos algorítmicos e passa a fazer parte daquela história que está sendo contada, revelando o protagonista. Em outras palavras, a figura humana retratada no videolog não age como uma representação, mas sim como um personagem. Passamos a ter um componente dentro do jogo que é sintético e renderizado: um componente de vídeo dentro de uma janela sob o jogo na forma de camada (uma fresta).
Ao consumirmos estas imagens, o espectador passa a ser um voyeur (KILPP, 2010): esse fetiche do gameplay é um modo de agir de uma virtualidade com uma qualidade (virtual) que abstrata os modos de ser que se atualiza. É como se estivéssemos com um retrovisor a nossa frente e olhamos para a fora por ele: querer vigiar/assistir essa narrativa composta por dois simultâneos (a figura humana e o micromundo do game).
Com o visível uso de inúmeras telas em paralelo na mesma superfície, o jogo executa a prática da hipermediação. É um estilo visual em que a vantagem de toda uma fragmentação, a incerteza e a diversidade reforçam o processo/desempenho (MITCHELL, 1994). A montagem que é construída aqui passa a ser uma linguagem padrão com o intuito de organizar todos os elementos que compõem uma imagem.
Considerações
A partir da investigação realizada neste trabalho, é possível afirmar que através de montagens espaciais constrói-se o estatuto dessa imagem das novas mídias, criando uma simbiose do que é imagem real e imagem técnica. Trazendo este ponto para os vídeos analisados, percebe-se que a multiplicidade visual existente se consagra fundamentalmente por colocar o espectador como foco na experiência proporcionada por estes videologs: o olhar curioso que nos permite estabelecer o sujeito desde o momento em que este depende do olhar do Outro para ter a sua imagem construída. A vigilância sobre o voyeurismo é o que caracteriza esse objeto afim de tornar autêntica a experiência de quem observa dando sentido ao processo. Nos videologs apresentados neste artigo, a utilização de um mesmo espaço para apresentar de forma múltipla eventos independentes uns dos outros, não anulam nenhuma imagem transmitida: são imagens que somam, como se o computador colecionasse memórias. Temos uma nova forma de meio interativo que permite criar outras formas de imagem em movimento: as ações no decorrer do tempo da partida desses games mudam o conteúdo de um quadro ou passa a criar um novo quadro, dando a eles uma condição em que a tela acometida como um todo.
Essa pluralidade dos audiovisuais acaba por ser uma virtualidade, atualizando-se de várias formas (câmeras de segurança na televisão, no cinema e nos games), sendo não somente uma característica própria dos videologs. A montagem espacial acaba por se tornar uma ferramenta desse registro dos jogos digitais e a especularidade proporcionada nos videologs é a sua própria característica no modo de agir de uma virtualidade. Pode-se dizer que temos a reinvenção dos antecessores dessa nova mídia, a fim de que o espaço não necessita mais do tempo, o que é simultâneo não precisa ser necessariamente uma sequência.
É possível perceber uma brecha para uma busca inquieta de identificar que superfície pictórica é criada a partir destes videologs em meio a esse interesse repleto de quadros e molduras que se apresenta. Como possibilidade de trabalhos futuros espera-se estreitar mais os estudos quanto essa exploração das qualidades das audiovisualidades das imagens que se manifestam nas montagens espaciais como um olhar onipresente que observa diversos olhares sob o mesmo objeto/fato ao mesmo tempo.
*Este texto é uma apresentação da análise extraída do meu artigo apresentado no Intercom Nacional 2016, sob orientação de João Ricardo Bittencourt.
Referências
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambrigde: MIT Press, 2000.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Sinergia Relume Dumará, 2009.
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5o. ed. [S.l.]: Perspectiva, 2003. p. 256.
KILPP, Suzana. A traição das imagens: espelhos, câmeras e imagens especulares em reality shows. Porto Alegre: Entremeios, 2010. 124p.
MANOVICH, Lev. The language of new media. Massachusetts: MIT Press, 2001.
MCGONIGAL, Jane. A realidade em jogo. Tradução: Eduardo Rieche. Rio de Janeiro: BestSeller, 2012.
MITCHELL, W.J.T. 1994. Picture Theory. Chicago: University of Chicago Press.
MOLDER, Maria Filomena. Método é desvio — uma experiência de limiar. In OTTE, Georg; Sedymayer, Sabrina; CORNELSEN, Elcio (Orgs.). Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
WOLF, Mark J.P. Abstraction in Video Games in Wolf, mark J.P.; PERRON, Bernard (org.). The video game theory reader. London: Routledge, 2003.