As ruínas de Nova Tristram

No presente texto optou-se por produzir um conto de ficção, a fim de promover uma experiência que ajude a produzir olhares escavatórios-dissecatórios em meio aos games, vindo a ser útil para o desenvolvimento da minha dissertação. Para contextualizar brevemente o estágio atual da minha pesquisa, o que me interessa é pensar na incrustação em games, e a partir desta qualidade que julgamos interessante, nos permitir produzir um olhar que imagine camadas nesses games. Para dar conta das demandas e complexidades do objeto da pesquisa, pretende-se uma abordagem metodológica que consiste na arqueologia das mídias e archaeogaming com movimentos de escavação e dissecação, a fim de colecionar tais imagens/incidências. Em função disso, este conto terá como principal característica uma especulação de tais movimentos arqueológicos em cima da narrativa do jogo Diablo III: Reaper of Souls.

***

Vinte anos se passaram desde os tempos mais sombrios e temerosos que ocorreram na velha cidade de Tristram. Esses acontecimentos perpassam por todo o mundo de Santuário, sem exceções. Me criei na maior cidade do Império Kehjistan e do Santuário: Caldeum – A Jóia do Leste. Caldeum, por conta de sua grandiosidade, é o centro comercial de todas as caravanas do Império, bem como é o território que comporta o Templo Yshari e a Grande Biblioteca.

Mapa do mundo de Santuário.

Vinda de uma família humilde, meu pai trabalhava no curtume e minha mãe taberneira. Sempre tive uma curiosidade fora do comum e uma habilidade única de desenterrar histórias e transcrevê-las em meus pergaminhos com tinta e pena. Para meus pais, uma perda de tempo, tendo em vista que era muito comum desde muito criança ajudar com as tarefas de casa ou mamãe em seu estabelecimento. Já ao me perder por palavras e livros, me permitia revirar o mundo podendo me aventurar e amarrar pontas que eram mal contadas e que minha habilidade de encontrar pistas era admirada por poucos. Vasculhar arquivos textuais, visuais, sonoros; assim como coleções de artefatos, enfatizando tanto as manifestações discursivas como materiais da cultura de toda Santuário. Na região, eu era conhecida como Ornyn, a arqueóloga.

Cidade de Caldeum

Em uma certa noite, um homem magro, com um capuz escondendo parte de seu rosto, bate em minha porta sem muito alarde. Ele se identifica como Emdin, o mensageiro, vindo de Nova Tristram com um pergaminho contendo um laço vermelho a ser entregue a mim. Mal pego em minhas mãos o papel e Emdin desaparece, sem rastros, o que me instiga. Me direciono ao meu quarto, empunho o lampião para melhor ver o recado que o pergaminho continha: era uma mensagem do ancião de Tristram, pedindo para que eu o encontre assim que possível. Sem muito entender do que se tratava, com um ar misterioso, meu instinto por aventuras e histórias não se cala, e mesmo com pouco tempo me preparo para partir ao amanhecer, pois para chegar a Nova Tristram é preciso cruzar os Mares Gêmeos e a jornada é longa.

Após cinco dias passando por inúmeras pequenas cidadelas do Santuário, avisto Nova Tristram. É meio da manhã, e a minha chegada desperta os olhares mais curiosos do povoado que sofreu muito com os acontecimentos em função dos Males Supremos que pairaram por estas terras. Nova Tristram, uma cidade cinza, com um ar úmido e brisas que por vezes carregam um odor acre e amargo o qual se misturavam com as marcas deixadas por uma grandiosa batalha entre gigantes.

Cidade de Nova Tristram.

Caminho descalça pela grama escorregadia que se encontra próxima a uma antiga praça da cidade, em ruínas, com uma bolsa de couro à tira colo contendo alguns pergaminhos, tintas frescas, lupa e materiais indispensáveis para uma arqueóloga do tempo. Recém-chegada à cidade, busco me conectar com a sua história e os mistérios que a cercam, com uma sensação de que há algo escondido por aqui. Feita de madeira, com a placa pendurada apenas por uma corrente e os tabuões do chão soltos, me aproximo da taverna da cidade, Taverna do Sol Nascente, para abastecer meu cantil e me encontrar com o ancião como solicitava o recado que recebi através de seu mensageiro. O taberneiro me finta com os olhos curiosos, me alcança o cantil e acompanhado dele uma taça de hidromel para aquecer nesse dia gélido. Em um canto à meia-luz do estabelecimento, avisto um senhor vestindo túnicas, um cajado ao seu lado, um grande livro na sua frente, um tanto inquieto, sentado em um banco cheio de pelegos. Pergunto ao homem de trás do balcão quem seria, e por certo acaso o mesmo confirma minha suspeita: é Deckard, o ancião de Tristram o qual vim ao encontro. Um ancião que claramente era algum tipo de mago.

Deckard é descendente direto dos grandes magos do passado, os Horadrim, encarregados de proteger o Santuário dos demônios que espreitam este mundo. Me aproximo com cautela e antes mesmo de me apresentar, sou reconhecida:

– “Eu não esperava que você fosse vir, minha jovem”, a aparência dele não faz jus a energia de sua fala. “Por favor, sente-se”, finaliza sem se virar para ver meu rosto.

– “Suspeito que há um propósito maior para minha vinda, mas eu ainda não descobri”, digo a Deckard ao juntar-me a ele à mesa. “E como uma boa escavadora de histórias e com vontade de sair um pouco de Caldeum, não pestanejei e vim assim que possível. Afinal, não é todo dia que se recebe um recado de um respeitado ancião”, finalizei.

Sem muitos rodeios, Deckard, bastante objetivo, pede para que eu o acompanhe e no caminho começa a me explicar o que o levou a me chamar para encontrá-lo em Nova Tristram. A cada palavra que era dita por ele, o conteúdo de cada lembrança dos acontecimentos de vinte anos atrás parecia retornar da latência, como se estivesse em seu estado original, não envelhecido, ou enterrado ou definhado em proporção à duração de sua ausência ao longo dos anos. Havia um nevoeiro que pairava ao redor das árvores que limitavam a mata próxima a cidade, e o ar começou a ficar mais úmido sendo possível ver a própria respiração no ar. A medida em que nos afastávamos do centro do vilarejo de Nova Tristram, a sensação de que havia algo importante em sigilo só aumentava.

– “Chegamos”, diz Deckard.

Ruínas Antigas: ruínas de Tristram.

As Ruínas Antigas são as ruínas de Tristram. Nunca estive fisicamente neste lugar, apenas ouvi histórias de anjos e demônios que travaram uma guerra a fim de expulsar os Males Supremos deste mundo. Um arrepio desliza pela minha espinha como dedos de fantasmas. Não é para menos: Deckard explica que neste local, os Ressuscitados atacaram a cidade sob o comando do Rei Esqueleto. Também foi neste ponto que Tyrael, antes sendo o Arcanjo da Justiça e depois o aspecto da sabedoria, foi trazido sendo resgatado pelos heróis da época. Tyrael foi um anjo mortal e defensor austero do Santuário. “Ele era conhecido por ser calmo, controlado e meticuloso na execução de suas técnicas de combate”, comenta Deckard com um tom saudoso na sua voz.

Gosto sempre de dizer que o enigma do tempo é que sua experiência subjetiva difere de sua medida objetiva: por ser muito criança quando ocorreu o Grande Conflito, estar aqui em meio à ruínas me proporciona uma experiência subjetiva com uma sensação de que ainda há algo sombrio adormecido por debaixo dessas terras, nos cantos destes escombros, na preocupação de Deckard. Imersa em meus devaneios percebo que Deckard não está mais ao meu lado, e apreensiva, busco com os olhos por aquela figura: o mesmo se encontra a meros cinquenta passos dali próximo ao que um dia foi uma fonte em meio a praça da velha cidade. Percebo um olhar perturbado do ancião:

– “São os restos da infame gaiola a qual fui mantido preso naqueles tempos sombrios, exatamente onde ela foi baixada”, transparecendo ainda mais que há algo maior escondido neste terreno.

Deckard revela que bem aqui, nesta terra, foi o palco da batalha final que deixou Tristram em ruínas. O próprio chão sob nossos pés havia se enegrecido de sangue demoníaco, e mesmo passado anos, havia uma aura tenebrosa que pulsava nesse mesmo local. Eis que percebo porquê recebi tal chamado para encontrá-lo:

– “Ornyn, dentro destas histórias passadas se encontra uma verdade mais profunda, essa se escondendo em lugares inesperados ou ainda nos lugares mais óbvios”, diz o velho ao se apoiar em seu cajado. “Sua presença aqui, minha jovem, é fundamental. Se minhas suspeitas estiverem corretas, ele ainda tem um grande papel a desempenhar neste mundo. Durante muito tempo evitei voltar para este local, mas chegou a hora.”

– “Eu não sei o que realmente aconteceu aqui, mas o que quer que tenha sido, foi horrível. Quase todos que sobreviveram ficaram loucos”, disse a Deckard em tom de consolo. “Estou aqui para ajudar”, finalizo.

– “Lembrar desta época é como lembrar de uma noite de sono conturbada, onde um pesadelo se sobrepõe a outro”, aponta Deckard. “Embora tenha sido salvo da morte, sinto como se parte de mim tivesse ficado para trás, ainda soterrado neste solo maldito”.

Começo a vasculhar o local, meu instinto arqueológico se inquieta e observo mais densamente ao meu redor. Não há vida em meio a essas ruínas, o ar fica pesado e o silêncio torna-se perturbador. Dou alguns passos ao redor do que um dia foi uma praça e que agora restam somente ruínas. Percebo a presença de corpos já decompostos presentes em alguns cantos, que possivelmente foram consequência do desfecho que resultou no abandono da cidade. A fonte que está no centro da praça está seca há anos. Ao me aproximar ainda mais da borda da fonte, me abaixo vagarosamente e percebo em meio aos escombros um artefato irregular incrustado na superfície da qual exala um odor acre, um fragmento de cor âmbar como se algum dia pertencesse a algo muito poderoso. Retiro ele de onde o encontro e levo até Deckard.

– “Devo confessar que, passado todo esse tempo, jamais veria isto novamente. Minhas suspeitas estavam de fato corretas… Como eu temia”, diz Deckard retirando de sua bolsa um livro velho entregando para mim.

É um diário antigo do velho ancião. Nele há todo o relato minucioso do tempo sombrio que pairou sobre o mundo de Santuário, um relato de um sobrevivente de tempos difíceis a ponto de sentir o sabor agridoce do sangue que manchava cada vilarejo. Deckard pula para a página a qual queria me mostrar: nela continha um desenho um tanto que trêmulo similar ao que encontrei nos escombros onde estamos, o que novamente me trouxe arrepios e certa preocupação. Parece ser parte da lendária Pedra das Almas Vermelha, que de certo modo parecia ser impossível tendo em vista de que foi destruída há muito tempo.

As Pedras das Almas foram onde os Horadrim esconderam as almas dos Três Males por toda Santuário. Durante muito tempo, Diablo corrompeu a pedra que o aprisionou conseguindo com que fosse libertado. Um antigo morador de Tristram, tomado pelo medo que aprisionava a cidade, acreditava que a única forma de controlar Diablo era cravando a pedra da alma em sua própria cabeça, sendo que isso era o que o demônio de fato queria: possuir um corpo. Há um grande confronto onde os heróis daquele tempo derrotam Diablo e destroem a Pedra da Alma no coração do inferno. Porém, Baal encontrou a Pedra da Alma âmbar e liderou uma nova investida ao mundo de Santuário. Tyrael, enquanto arcanjo da justiça, toma uma decisão para enfim salvar a humanidade: utilizando sua espada angelical contra a Pedra do Mundo, a destruindo.

– “Vinte anos se passaram, e grande parte da população não se lembra mais claramente dos acontecimentos passados relativos aos Males Supremos”, afirma Deckard, um dos poucos que se lembra de tudo e que acredita que os Males Supremos restantes (Mephisto e Baall) estão planejando o Fim dos Tempos.

O nevoeiro se intensifica, estava abafado e úmido, quando de repente aquele fragmento encontrado cai de minhas mãos em direção ao chão com uma força descomunal. Olho para Deckard e ambos nos afastamos lentamente. Começa a escurecer nas Velhas Ruínas e algo acontece: abre-se um tipo de fenda para um outro tempo. Por um breve momento, lembro-me das palavras proferidas de um velho mendigo pelas ruas de Caldeum, que dizia “cuidado com a vinda dos malignos! Tudo começará com a abertura dos portões, e terminará com horror e morte! O céu ficará negro, e as ruas, cobertas de sangue”. Ninguém nunca levou o homem a sério, sendo considerado um lunático, afinal, o Grande Conflito teve seu fim. Porém, desde que recebi a carta de Deckard e cheguei à Nova Tristram, parecia de fato haver algo que fugia do conhecimento de todos, guardado e protegido pelo velho ancião. De algum modo, me assusto com o feixe de luz que se abriu no tempo entre Deckard e eu, mas minha curiosidade e instinto por vasculhar histórias inacabadas me toma de bravura.

Fenda do tempo que se abre próxima a fonte das Ruínas Antigas.

Me aproximo da fenda cuidadosamente, e num súbito momento pareço ouvir um sussurro dizendo “Ornyyyynnnnn…” com um ar mais gélido do que parecia de fato estar. Nesta hora, Deckard me puxa pelo braço e, sem entender como, o que parecia ser um portal se fecha. Em algum lugar um pouco distante de onde estávamos, um uivo sobrenatural assombroso foi emitido, e então se perdeu em silêncio. Nada mais aconteceu.

– “Os Males são incansáveis”, disse Deckard apreensivo. “Eu esperava que isso fosse acontecer a qualquer momento”.

Retornamos para o vilarejo em direção a casa de Deckard. Pequena e acolhedora, percebo em meio a bagunça instaurada de papéis espalhados pelo espaço, pilhas de livros, pergaminhos e alguns desenhos um pouco desajustados. Um paraíso para quem adora vasculhar arquivos, me senti em casa rapidamente. Sentamos ao redor do fogo acompanhados de uma bebida quente, pois o frio noturno de Nova Tristram dói até os ossos.

– “Devo confessar que após todos esses acontecimentos, lutei com todas as forças para manter a esperança”, lamenta Deckard.

– “Creio que existe algo mais além daquilo que vemos. Não sei o que, mas sinto que existe”, disse a Deckard ao me enrolar ainda mais em uma coberta próxima ao fogo.

O velho ancião me explica o incidente ocorrido a pouco. Ele conta que em seus sonhos, de maneira recorrente, havia muita destruição e sangue lavando as ruas da cidade. Deckard revela que em um de seus sonhos, eu estava presente, como peça importante para desvendar esse mistério que ronda por debaixo dos escombros de Tristram. De fato, o que encontramos é um fragmento da Pedra das Almas que não foi destruído, e isto representa que o Grande Conflito não terminou como todos creem. Isso confirma o que Deckard acredita, de que há dois Males Supremos restantes que estão planejando o Fim dos Tempos de Santuário.

O invisível deixa seus rastros, onde a memória de um tempo passado é uma operação de alteração neste caso, e não de reconhecimento dos fatos: o fagulho de fenda que se abriu não teve força suficiente para se manter aberta, faltou mais medo para alimentar a sua força. Ao conseguir manter-se aberta, teríamos múltiplos tempos em conflito que se juntam, sempre um voltando ao outro, e nesse retorno voltaríamos ao futuro temido por Deckard: a humanidade dizimada. A sua função de proteger este segredo vai de encontro com a falta de conhecimento da população de Santuário, na falsa crença de que os Males foram vencidos e a paz retornou.

– “Não sei por quanto tempo irei conseguir manter tal segredo, pois parece que minhas suspeitas estão corretas: eles ainda têm um grande papel a desempenhar neste universo”, complementa Deckard.

Já está muito tarde e nos recolhemos para dormir. Ao amanhecer, não encontro Deckard em sua própria casa: avisto apenas suas túnicas caídas no chão e seu cajado encostado próximo as brasas do fogo que fizemos à noite. Parece que ele se desfez como mágica, e me sinto confusa por um instante, se de fato estou em um sonho ou não. Encontro um pedaço de papel em cima da mesa próximo ao que seria uma cozinha de sua casa:

“Pense com cuidado sobre isso, Ornyn. Os eventos recentes em torno das velhas ruínas de Tristram me fizeram formular teorias que não ouso expressar aqui. Meu papel de proteger todos os seres de Santuário chega ao fim, e consigo descansar sabendo que deixei em boas mãos este segredo a ser velado. Já estava muito debilitado para seguir esta jornada, e em meus sonhos via você como parte da profecia a fim de proteger este segredo e evitar que o mal e o medo corrompam a todos os vilarejos. Tome cuidado, fique um pouco e ouça. Estes acontecimentos são mais do que histórias. Aconteça o que acontecer, querida, sempre mantenha a esperança. Pois muito além do conflito entre os mundos e da luta sem fim em nossos frágeis corações, creio que alguma coisa melhor nos aguarda. Confio a você está tarefa de proteger o Santuário.
Um novo começo, um reinício…Deckard.”

Começo a refletir sobre o dia anterior, os acontecimentos e a carta de Deckard deixada para mim. Poderiam haver muitas maneiras de abordar este mal que pulsa por debaixo dos escombros das ruínas, mas apenas um objetivo muito claro: proteger a todo custo o fragmento encontrado dos corações e mentes frágeis, fáceis de serem corrompidas, alimentando as forças dos Males adormecidos. Guardo junto ao diário de Deckard a sua carta, em minha bolsa, junto meus poucos pertences e saio da casa do velho ancião. Retomo minha jornada, agora de volta a Caldeum, com uma missão sob minha responsabilidade e um segredo a ser protegido à sete chaves. “Que os arcanjos nos protejam”, penso à medida em que me distancio de Nova Tristram em direção ao desconhecido que aguardam os dias futuros.

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