Televisão Experiencial: telas, reality e metaverso

*Texto originalmente publicado no site do meu grupo de pesquisa, o TCAv, para a série que reflete acerca das audiovisualidades na pandemia.


Não há dúvidas de que a pandemia da COVID-19 nos impôs um novo modo de agir e de ser no mundo. Com ela, vieram novos formatos de interações, uma aceleração tecnológica, um consumo exacerbado de imagens a todo instante. Mesmo que não estejamos mais em um momento mais severo de isolamento social, como foram os últimos anos, ainda temos as telas nos fazendo companhia: nossas vidas passaram a habitar telas, ou, pelo menos, são por elas atravessadas. Poderíamos dizer que o “mundo” se encontra na sala de nossos lares, mediados pela técnica e por processos midiáticos. Do mesmo modo, nossas vidas ganham uma nova camada de ‘especularidade’ a partir da representação através das imagens: “passamos a viver uma experiência de termos acesso à intimidade do outro por meio da imagem”. (BEIGUELMAN, 2020, online).

Fonte: Reprodução. Tri Curioso.

Pensar nesse confinamento o qual passamos por um longo período durante a pandemia (a qual ainda estamos vivendo) e em nossa relação com as telas, me provoca pensar no confinamento televisionado, os reality shows. Este formato de programa televisivo, a nível global, nos apresenta um jogo performático que “busca se aproximar da nossa realidade”. Ao pensar nesses mundos ficcionais, conforme Suzana Kilpp,

quanto mais se assemelha a esse realismo performático que tomou conta da tela, mais reality são esses mundos. O sucesso obtido pela estética reality vem espalhando a estética realista pelos tempos de TV, fenômeno que é acelerado ainda por uma variada produção – similar, mas mais interativa – na web, nos celulares, nos videogames etc., produção esta que talvez esteja de alguma forma antecipando efeitos que poderão ser produzidos pela TV digital. (KILPP, 2018, p. 36).

O que estamos experienciando é uma expansão do audiovisual nas mídias (e para além delas), a partir de fenômenos tecnoculturais contemporâneos por conta da convergência de tecnologias, formatos, linguagens e estéticas (KILPP, 2018), potencializados pela condição pandêmica na qual foi preciso nos reinventarmos. Deixamos de sermos apenas um sujeito observador (voyer), passamos a constituir e in-formar tais imagens. Aqui, chama a atenção não o possível efeito a partir da TV digital, mas sim a aparente necessidade de estarmos inseridos em um ambiente virtual, como a ideia de metaverso.

Fonte: Reprodução. VR Scout.

Recentemente saiu uma matéria no site VR Scout, intitulada “Reality TV Meets The Metaverse In This Interesting New Project”, escrita por Kyle Melnick, onde logo no começo do texto vem os seguintes dizeres: “bem-vindo ao mundo real: edição metaverso” (tradução livre). Em uma parceria estabelecida entre o estúdio de produção virtual Dark Slope e a produtora canadense Insight Productions (Big Brother CanadaCanadian IdolThe Amazing Race Canada etc.), será desenvolvido uma nova forma de “televisão experiencial”, a qual irá combinar a tecnologia do metaverso com o gênero televisivo de reality show.

Fazendo uso do mecanismo de jogo Unreal Engine 5, os desenvolvedores têm se referido a esta experiência de “Hyperreality Initative” (na tradução livre “Iniciativa de hiper-realidade”). O projeto, além de gerar gráficos visuais de alta qualidade, visa combinar a tecnologia de feedback tátil para aumentar a experiência dos participantes do reality show. Somam-se aí, também, o uso de rastreamento de mão, rosto e objetos, os quais oferecem interações com maior detalhamento pensando no ambiente digital – uma vez que essa reprodução por controladores de movimento padrão seria mais difícil.

Estamos em frente a fenômenos os quais se complexificam conforme se envolvem no tecido social, à medida que vão se desenvolvendo acerca da técnica. Lançando um olhar para a técnica, o fazer, isso reforça que a experiência corporificada sempre esteve “imbricada” em nossa cultura. Chegamos, aparentemente, em um estágio onde apenas televisionar e “monitorar” o comportamento de pessoas por meio de câmeras e “(não) espelhos” não conseguem se “aproximar da nossa realidade”. É preciso novos acionamentos técnicos e de um novo corpo que não só observa, onde possamos colocar em prática (mesmo que tentativo) encarar as tecnologias que se apresentam como espaços para serem experimentados (HUHTAMO, 2013).

Lost in Time – The Worlds First Interactive Mixed Reality TV Show”.

Há muito deixamos de ser um sujeito observador, nos tornamos editores: temos o nosso corpo filtrando a informação e, com isso, criando imagens. Além do incansável desejo de representar o mundo da forma mais “realista” possível, somos atravessados pelo desejo de cada vez mais tentar nos “colocarmos lá” – afinal, já estamos habitando telas. Nossos perfis nas redes sociais, por exemplo, não apenas performam, mas projetam experiências: organizamos os nossos corpos, a nossa identidade visual a partir daquilo que gostaríamos de projetar. O mesmo vale para a imagem que comunicamos em videochamadas e lives, com o quanto calculamos e montamos o cenário. As imagens nos traem (KILPP, 2010), e as produzidas pela tevê (e outros aparatos técnicos/mídias/plataformas) também: possuem sua própria realidade, tendo como sua natureza a própria técnica.

Por conta de estarmos inseridos em uma cultura cada vez mais codificada (ou softwarizada), somos atravessados por telas e dispositivos que em determinada instância potencializam nossas experiências em relação ao mundo – em tempo real. Entretanto, entramos e saímos de ambientes midiáticos esquecendo que estes se tratam de uma mediação imagética-técnica-tecnológica. Além disso, precisamos ter cuidado para não cairmos na redução da materialidade pela materialidade, mas, também, observar o processo de constituição tanto do sujeito quanto da própria imagem.

Kilpp (2018, p. 20) já nos apontava que “(…) muito em breve a TV que conhecemos […] terá sido afetada em sua natureza pela TV digital e, principalmente, pelas web TVs, bem como pela dispersão de conteúdos televisuais e em dispositivos móveis”. Hoje, estamos vendo este movimento indo em direção a era da “televisão metaverso imersiva” a partir de práticas de realidade mista/expandida – ainda que esta não seja a primeira tentativa em experimentar a tecnologia imersiva em relação à televisão. À luz da perspectiva Mcluhiana, estamos na companhia de aparatos os quais se mostram como sendo os principais meios da nossa época. Não à toa que suas lógicas, linguagens e estéticas passam a integrar todo o ecossistema midiático, bem como no modo como nos projetamos para o mundo.


Referências:

BEIGUELMAN, Giselle. Minha Casa, Meu Cenário. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/minha-casa-meu-cenario/?fbclid=IwAR0whlXYEByI9afxCOpZvOq0Sjp9qluYqMRNDKohBbFw2qvS6FQa3Tx6A6k

CORSO, Aline; ÁVILA, Camila de. A intimidade doméstica e a pandemia imagética. 2020, online. Disponível em: https://www.tecnoculturaaudiovisual.com.br/a-intimidade-domestica-e-a-pandemia-imagetica/.

KILPP, Suzana. A traição das imagens: espelhos, câmeras e imagens especulares em reality shows. Porto Alegre: Entremeios, 2010.

KILPP, Suzana. Imagem-duração e teleaudiovisualidades na internet. Curitiba: Appris, 2018.

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