Colecionando fósseis e tesouros: Goblins em Diablo III

Acompanhada da tecnologia, a questão da memória permite gerar um diálogo entre as gerações de usuários/jogadores, passando a estabelecer uma mediação entre o “passado e o presente, o analógico e o digital, o arquivamento e o performativo”. (HEIJDEN, 2015, p. 116). Ou seja, não temos apenas a memória do jogo ou uma construção da mesma, mas sim o jogo como objeto da sua própria memória — em um sentido duplo.

Em minha dissertação de mestrado, a camada de incrustabilidade tecnostálgica parte de um movimento que nos aproxima do nosso objeto empírico (Diablo enquanto franquia) nos oferecendo pistas sobre os jogos conterem em si marcas de outros jogos (sejam da própria franquia ou outros jogos), bem como da cultura de um modo geral para além de um simples “poço nostálgico” — seja da ordem do afeto, do tributo, da nostalgia, da retromania etc. Portanto, ao longo da minha pesquisa, percebi em Diablo inúmeras formas de se relacionar com o passado e o presente de jogos que o antecederam.

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Mesmo ponto do mapa com estética/roupagem atualizada. (A) Diablo III; (B) dentro do evento O Escurecer de Tristram (Diablo original). Fonte: Produzido pela autora.

Antes de seguir o texto, vou explicar de modo breve a questão da incrustabilidade: é uma perspectiva que me inquieta pensar na possibilidade de uma coalescência de tempos. Por estar observando as coisas como detentoras de memória, em camadas portadoras de lembrança de outros tempos, avanço, então, para pensar que a incrustação (uma coisa grudada em outra coisa) como incrustabilidade é a incrustação do passado no presente. Para Zielinski (2006), todas as mídias anteriores existem lado a lado — continuam existindo independente dos dispositivos/sistemas.

Assim, comecei a perceber nas minhas escavações que os jogos dentro de jogos começaram a revelar um universo mais amplo ao olharmos para vestígios de outras temporalidades. Ao escavar, temos todos os jogos anteriores lado a lado com o atual, invisíveis ou não, portanto, temos uma maneira específica de olhar o jogo. É neste ponto que passei a perceber diferentes camadas(1) presentes naquele espaço sintético (do jogo), com uma qualidade de incrustabilidade tendo características operacionais distintas.

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Portal de acesso para o Cow Level. O que surgiu de um rumor no jogo original e foi concretizado em Diablo II, em Diablo III o Nível da Vaca está presente novamente, bem como o “culto” em seguir negando tal evento (para os desenvolvedores, o nível da vaca é uma mentira). Este é um nível secreto dentro do jogo, fora da “rota” e/ou finalidade do jogo maior. Fonte: Produzido pela autora.

Ao encararmos os jogos enquanto sítios arqueológicos, percebi que Diablo era um ótimo exemplo onde todo o ato de jogar é arqueológico. Assim como a maioria dos jogos deste gênero, em Diablo o jogador precisa explorar o mapa para encontrar certos artefatos ou itens cosméticos (o fóssil) para aprimorar o seu herói — ponto este que o próprio jogo estimula. Neste caso, além de sermos MongesBárbarosCruzadosNecromantesFeiticeirosBruxos ou Caçadores de Demônios, também somos “Arqueólogos Nephalem” (tanto o personagem, quanto o jogador).

São inúmeras idas e vindas no campo, para ter a chance de encontrar esse e outros tantos “fósseis” ao longo do caminho, bem como Goblins. Os Goblins do Tesouro são criaturas encontradas aleatoriamente espalhadas pelas masmorras e mapas de Diablo III, eventualmente acompanhados de um portal para o seu reino de fuga, onde deixam cair ouro ou itens os quais o jogador pode coletar. Estas figuras surgem nas minhas escavações por carregarem em si um aspecto memorial onde, ao encontrar ao longo da minha jornada observando jogos anteriores à Diablo, experimentamos uma espécie de flashback de memória ao nos depararmos com um elemento reconhecível.

A existência de Goblins em Diablo III vem de uma outra fonte: os Goblins do Tesouro são inspirados na série de videogames Golden Axe(2), onde nos mais diferentes níveis os jogadores ao dormirem em um acampamento são acordados por Goblins ladrões (os Thieves) com grandes sacos de saque sobre os ombros. Golden Axe, lançado em 1989 pela Sega Enterprises Ltd., é um jogo de luta horizontal em que podemos escolher entre um dos três personagens disponíveis: o bárbaro Ax Battler, o anão Gilius Thunderhead ou a amazona Tyris Flare. Como um bom jogo de fantasia, a premissa deste game é “tentar derrubar o domínio maligno de Death-Adder”(3), o qual sequestrou e aprisionou o rei e sua filha, roubando o lendário machado de ouro (Golden Axe).

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Golden Axe (1989). Fonte: MobyGames.com (2019).

O que faz desse jogo se aproximar de nosso objeto empírico, além de carregar um estilo de jogo presente em Diablo, são criaturas pequenas que aparecem no mapa: os Thieves. Estes pequenos elfos, ao serem atacados, deixam cair algumas mercadorias. Existem dois tipos desses ladrões: Blue Thieves, são mais comuns e jogam potes mágicos; Green Thieves, largam comida e são os únicos que não roubam(4).

Fui atrás de fontes que pudessem afirmar com maior precisão sobre essa “coincidência” entre os jogos, mas apenas encontrei as respostas em fóruns de discussões sobre Diablo: há falas em meio a comunidade do jogo de que Jay Wilson, diretor de Diablo III até 2013, falou no lançamento do jogo que os Goblins são baseados diretamente em Golden Axe(5). Quando o jogo foi lançado na versão beta, a comunidade de jogadores passou a assumir que estes seres eram apenas um easter egg para Golden Axe, mas na minha pesquisa tratei esta pista com um caráter memorial, declaradamente com aspecto de tributo.

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Goblins: (A) Goblin em Golden Axe; (B) Goblin em Gauntlet; (C) Goblin em Diablo III. Fonte: Produzido pela autora.

Outra influência provável, é o personagem The Thief do clássico de arcade Gauntlet, um pequeno personagem que corria ao redor de uma masmorra e roubava power-ups(6) dos personagens que não o matavam em um tempo estipulado. Assim como qualquer produto cultural costuma citar alguma coisa em si, aqui estou pensando este “citar” na forma de nostalgia e tributo indo na direção da memória, lembrança, recordação. Em Diablo III, percebi que inúmeras vezes o jogo pratica o ato de trazer a sua obra dentro de si, ou um jogo que traz jogos do mesmo tipo inseridos em sua própria estrutura: uma coisa incrustada na outra.

Se imagens e/ou vestígios de outros tempos se aglutinam dentro de um jogo, isso pode provocar uma reflexão sobre como pensar a incrustabilidade entre os jogos, sendo este um recurso audiovisual presente em outras materialidades da tecnocultura. Portanto, nem sempre teremos jogos dentro de jogos, mas inúmeras outras formas e camadas de uma incrustabilidade presentes nos games como uma potência de auto referenciação ou a outros jogos, como característica de uma tecnocultura dos jogos — o jogo enquanto objeto da própria memória.


Referências

ÁVILA, Camila de. A Incrustabilidade Durante em Jogos Digitais: Escavações de uma Archaeogamer. São Leopoldo: Unisinos. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social), Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Disponível em: http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/9110.

HEIJDEN, Tim van der. Technostalgia of the present: from technologies of memory to a memory of technologies. European Journal of Media Studies (NECSUS), Amsterdam University Press, v. 4, n. 2, p. 103–121, 2015. Disponível em: https://www.academia.edu/19533260/Technostalgia_of_the_Present_From_Technologies_of_Memory_to_a_Memory_of_Technologies._In_NECSUS_European_Journal_of_Media_Studies_4_2_2015_pp.103-121.

ZIELINSKI, Siegfried. Deep time of the media: toward an archaeology of hearing and seeing by technical means. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2006.


Notas:

(1) Na dissertação, temos as camadas: tecnoestética (ordem da programação e/ou software do jogo até uma mais visual); recursiva (traços físicos da ordem do maquínico que são memoriais); tecnostálgica (ordem da nostalgia/tributo — para além de um “poço nostálgico”); déjà vu (ordem tecnocultural, mais profunda — invisível).

(2) Golden Axe é um jogo da SEGA, originalmente desenvolvido para arcades (fliperama) em 1989, mas também foi lançado para os videogames Master System e Mega Drive até mesmo, anos depois, para outros consoles e computadores. O cenário do jogo é ao estilo Conan, onde o jogador precisa conduzir seu personagem por cenários repletos de inimigos até o castelo de Death Adder para resgatar o rei e a rainha.

(3) Uma curiosidade sobre Golden Axe: para os fãs dos filmes, os gritos de morte dos bandidos são digitalizados a partir dos gritos utilizados nos filmes First Blood e um de Conan The Barbarian. (https://www.mobygames.com/game/golden-axe).

(4) Site: https://goldenaxe.fandom.com/wiki/Thief.

(5) Site: https://www.reddit.com/r/Diablo/comments/why9h/treasure_goblins_are_they_an_idea_based_from/.

(6) Nos videogames, power-up é uma expressão utilizada para um item qualquer que aumenta o poder, velocidade ou algum outro atributo de algum personagem ou veículo controlado pelo jogador durante o jogo.

*Curiosidade: existe um mod para Diablo II que insere Goblin no jogo (originalmente, essas criaturas só aparecem a partir do Diablo III). https://www.moddb.com/mods/diablo-2-lod-113-content-update-mod/images/treasure-goblin

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